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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A “Tourada” que eu gosto



Em criança assisti muitas vezes, na televisão, a espectáculos de tourada.

Havia apenas um canal, começava a emissão ao fim da tarde (menos aos fins-de-semana, que começava mais cedo), era a preto e branco e não havia assim tantas  alternativas ao futebol e às touradas.

Nem eu, nem ninguém lá em casa, éramos  apreciadores desse espectáculo, mas o preto e branco atenuava a sua violência.

Só quando, esporadicamente e de relance, comecei a ver touradas a cor na televisão é que deu para ver a sangria a que era sujeito o touro.

Nunca percebi o gozo de ver aquele espectáculo de torturar um animal encurralado.

Claro que a tourada portuguesa é um pouco mais “civilizada” que a espanhola.

Ainda posso aceitar o trabalho do toureio a pé com capa ou o dos forcados, e as habilidades dos cavaleiros, mas não aceito que se encha o corpo do animal de bandarilhas.

Quando chega à fase do toureio a pé ou da entrada dos forcados, o touro já deve estar tão enfraquecido que apenas reage para manifestar a sua dor e já pouco perigo deve oferecer aos “valentões” que o enfrentam.

Escusado será dizer que torço sempre pelo touro e pelo cavalo, personagens involuntárias daquele triste espectáculo, embora ainda nutra algum respeito pelos forcados, e desejando  que nada de muito grave aconteça ao toureiro, ao forcado ou  ao cavaleiro, embora, como se costuma dizer, "quem corre por gosto não cansa".

E não venham fazer comparações com os animais do circo, com a caça ou com a criação de animais para alimento. Neste caso não se trata de torturar animais, mas dar-lhes alguma utilidade, por muito discutível que isto também possa ser.

No caso da tourada não há qualquer utilidade naquilo, a não ser torturar um animal indefeso.

Aliás, toda a polémica que anda por aí não se relaciona com qualquer tipo de proibição do espectáculo, mas apenas com o retirar do privilégio de classificação de espectáculo  cultural àquela barbaridade, aumentando o IVA das touradas.

Embora discutível, até admitia mais facilmente a proibição desse espectáculo do que a proibição, já aprovada, do uso de animais de circo.

A diferença é que a gente do circo é pobre e não tem poder ou voz, ao contrário da gente que vive à volta da tourada.

Uma coisa é o uso de animais para alimento,(que pode ser discutível,principalmente pelo excesso, prejudicial para à saúde, do uso de carnes vermelha),  pelas implicações ambientais do excesso de criação de gado ou pela forma como são transportados e abatidos, outra coisa é o uso de animais, como acontece nas touradas, apenas para os torturar  para gáudio dos instintos mais primitivos do público.

E não venham falar em tradição, se não, para a manter, ainda assistíamos a espectáculos de gladiadores ,  ao sacrifício ritual de animais, a queimar gente nas fogueiras ou à luta de cães.

De facto, impedir ou, pelo menos, tirar benefícios fiscais, é o mínimo que se pode exigir para combater tradições degradantes e a utilização de animais apenas para os torturar em público.

A única “tourada” de que eu gosto é aquela que nos representou no festival da canção de 1973, que escapou à censura, que não percebeu que essa canção não enaltecia a tradição da tourada, mas usava-a com metáfora para denunciar um Estado Novo apodrecido:

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.

Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais 
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram asa canções.

 (José Carlos Ary dos Santos/Fernando Tordo)


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