Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O Fascismo “nunca existiu”!??...ou existiu “apenas” num país!???...ou “anda ainda por aí”!?? -3º parte



Registámos, em dois posts anteriores, as características históricas do fascismo e a forma como a investigação histórica dos anos 90 caminhou no sentido de demonstrar que o fascismo estava morto e enterrado.

Referimos a excepção de Umberto Eco que, remando conta a maré dominante, explicou num ensaio de 1997, que o fascismo podia ressurgir com novas roupagens.

Ficámos de explicar quais eram as características, apontadas por Eco,  desse “novo fascismo”, que ele designa com “Ur-fascismo”.

Depois de analisar o exemplo do fascismo italiano, mostra que o fascismo não era coerente do ponto de vista ideológica, “não era uma ideologia monolítica, mas uma colagem de diversas ideias politicas e filosóficas, uma amalgama de contradições”, ao contrário do nazismo.

Por isso considerava que, se o nazismo não iria reaparecer “como movimento que envolva uma nação inteira”, pelo contrário o fascismo mantinha condições para renascer sob novas roupagens.

Escreve Eco que houve “um único nazismo”, mas, em” contrapartida, “pode-se brincar ao fascismo de muitos modos”, porque o “termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou vários aspectos, e poder-se-á reconhecê-lo com fascismo”.

Apesar da confusão e da dificuldade em definir fascismo, é “possível indicar uma lista de características típicas do que poderei chamar o “Ur-fascismo” ou o “fascismo eterno”. Estas características não poderão ser ordenadas num único sistema: muitas contradizem-se reciprocamente, e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas basta que esteja presente uma delas para fazer coagular uma nebulosa fascista”.

E quais são essas características apresentadas no ensaio de Eco?

Ei-las, de forma resumida:

-1. O culto da tradição, embora seja “mais velho do que o fascismo”;

-2. A rejeição do modernismo e do mundo moderno, que também se pode referir como “irracionalismo”.

-3. O culto da “acção pela acção”: “A acção é bela em si, e portanto tem de ser realizada antes de e sem qualquer reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso a cultura é suspeita na medida em que se identifica com comportamentos críticos”, atitude identificada com o “uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Convencidos”, “Snobs radiais”, “As Universidade são covis de comunistas”(…).

-4. O desacordo “é traição”.

-5. O Medo da diferença. “O Ur-Fascismo é (…) racista por definição”.

-6. A exploração da “frustração individual ou social” , apelando “às classes médias frustradas , sentindo mal-estar por qualquer crise económica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos”.

-7. O nacionalismo, com apelo à xenofobia e que procura inimigos externos e internos que “conspiram” contra a identidade nacional.

- 8 . A defesa face a um inimigo que humilha o “povo”  pela “riqueza ostentada”.

- 9 . A critica ao pacifismo.

- 10 . O elitismo de massas e o “desprezo pelos fracos”. Quem se identifica com o “chefe” ou com “o partido” é o “melhor  povo do mundo” e os que pertencem ao “movimento” são “os melhores cidadãos”.

- 11 . O culto do “herói”, “todos são educados para se tornarem heróis”.

- 12 . o “machismo”, que implica o “desprezo pelas mulheres” e a “condenação” da homossexualidade.

- 13 . O “populismo qualitativo”, ou seja, “os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos” e é o líder que interpreta a vontade do povo. Já então Eco avisava que no “nosso futuro perfila-se um populismo qualitativo Tv ou internet, em que a resposta emotiva de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentado e aceita como a “voz do povo”. Devido aos seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo tem de opor-se aos “putrefactos” governos parlamentares”. E conclui: “sempre que um politico lança dúvidas sobre a legitimidade do parlamento por já não representar “a voz do povo”, já podemos dizer que cheira a Ur-fascismo”.

- 14 . “O Ur-Fascismo fala a “neolíngua””, um termo inventado por George Orwell par o seu romance “1984”, uma crítica ao stalinismo então dominante entre os movimentos comunistas, mas que, segundo Eco, tem elementos comuns “a formas diferentes de ditaduras”, referindo o léxico pobre, de frase feita, com fins propagandísticos e de doutrinação, que procura alterar o significado da palavra com o objectivo de “limitar os instrumentos para o raciocínio complexo e crítico”, avisando para a necessidade de estarmos preparados “para identificar outras formas de neolíngua, mesmo quando toma  a forma  inocente de um talk- show popular”.

Conclui Eco que o “Ur-fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes . O nosso dever é desmascara-lo e apontar o dedo a cada uma das suas novas formas –diariamente, em todo o mundo”.

Aquilo que parecia então uma mera divagação intelectual, está hoje mais actual do que muito.

Muitos dos 14 pontos apontados por Eco estão aí mais do que presentes no discurso populista de líderes políticos e movimentos de várias vestes e cores, da Venezuela ao Brasil, da Coreia do Norte à Hungria, da Rússia à Turquia, das Filipinas à Polónia, da Grã-Bretanha aos Estados Unidos, da França à Itália….

As redes sociais, que substituem a rua como lugar de manifestação da violência e do ódio de tipo fascista, estão cheias de um discurso acima identificado por Eco como o “Ur-fascismo” dos nossos dias :

-o apelo irracional ao ódio contra quem não pensa como nós;

- o discurso saudosista do “antigamente [leia-se por cá, no tempo de Salazar] é que era bom”;

- a diabolização e ridicularização das ditas questões fracturantes [a critica à modernidade];

- a disseminação das fake news ( a mentira várias vezes repetida para se tornar “verdade”);

- a criação de um clima de medo ( exagerando, pela repetição e pelo destaque, a existência de uma sociedade “dominada pelo crime”);

 -a desvalorização do Estado de Direito, com apelos à judicialização da sociedade, renegando a presunção de inocência ou fazendo dos tribunais espectáculo, recorrendo à divulgação de processos em segredo de justiça, conduzindo à defesa de uma  justiça popular e a uma justiça feita pelas próprias mãos, atitude potenciada pelos títulos de tablóides;

- a desvalorização de um pensamento crítico, atacando os “intelectuais”, o conhecimento cientifico, o papel das universidades “tomadas pela esquerda”;

- o desprezo pelos fracos, que culpa pela sua fraqueza, “vivendo dos subsídios”, apenas tolerados com alvo de campanhas de caridade para limpeza de consciências;

- o nacionalismo exacerbado, cercado de “inimigos” ( os “venezuelanos”, os “comunistas”, os “islâmicos”, os “terroristas”, os “emigrantes”…);

- a superioridade “democrática” das redes socias, a  verdadeira “voz do povo”, como contraponto da democracia “corrupta” e putrefacta” dos regimes parlamentares e dos políticos;

- etc., etc., etc….

Uma actualização fundamentada  do perigo de um “novo fascismo” está presente na recente obra de Madelene Albright, “Fascismo um Alerta”.

Historiando a origem histórica do fascismo e mostrando o que este teve de comum com o comunismo real (na sua versão stalinista) no desdém pela democracia, encontra diferenças assinaláveis entre as duas ideologias.

Faz igualmente o historial do MacCarthismo e da forma como, durante a Guerra Fria, os regimes democráticos pactuaram com as mais criminosas ditaduras, mostrando a forma como, no seio de regimes democráticos sólidos, o perigo das pulsões fascistas está presente e se pode transformar a democracia numa “ditadura da democracia”.

Faz um historial recente da presença dessas pulsões fascistas em regimes actuais, que , mesmo quando de origem ideológica aparentemente diferente, transportam em si o vírus do fascismo: o recurso à mentira, o desdém pela liberdade e pela democracia, o carisma do líder, o recurso ou apelo ao genocídio, o combate à diferença e o nacionalismo exacerbado.

Percorre a história recente do chavismo venezuelano, do regime turco de Erdogan, da ascensão de Putin, da “democracia iliberal “ de Órban na Hungria, da liderança omnipresente da dinastia Kim na Coreia do Norte, entre muitas outras referências a outros regimes “proto fascistas” como o de Sissi no Egipto, o de Kaczynski na Polónia, o de Zeman na República Checa, o de Duterte nas Filipinas (só não falando em Bolsonaro porque ainda não era notícia à data da escrita do livro), chegando à principal preocupação para o seu alerta contra o fascismo, a situação que se vive nos Estados Unidos com a vitória de Trump.

Claro que nenhum desses regimes é classificado por Albright com “fascista” ( apenas classifica como tal o da Coreia do Norte), mas todos transportam em si a semente de um novo fascismo, principalmente pela forma como banalizam um determinado discurso e uma determinada atitude que justifique as pulsões “fascistas”.

Em muitos desses governos e noutros movimentos de tipo populista por esse mundo fora, e citando Robert Paxton, da Universidade de Columbia, “ouvimos ecos de temas fascistas clássicos: medos da decadência e do declínio; afirmação de uma identidade nacional e cultural; uma ameaça à identidade nacional e à boa ordem social por parte de estrangeiros não assimiláveis; e a necessidade de maior autoridade para liderar com esses problemas”( pág.222).

Em comum, Albright encontra nalgumas das atitudes daqueles governos o caminho para um novo fascismo:

“Rapidamente o Governo que silencia um meio de comunicação acha mais fácil silenciar um segundo. O parlamento que ilegaliza um partido politico passa a ter um precedente para banir o seguinte. A maioria que priva determinada minoria dos seus direitos não para por aí. A força de segurança que espanca manifestantes e fica impune não hesita em voltar a fazê-lo” (pág.278).

Albright recorda-nos que, como aconteceu ao longo da história, os fascistas podem chegar ao poder por via eleitoral. Hoje em dia, aliás, não se atrevem a fazê-lo de outro modo. Geralmente chegados aos poder, vão dando passo a passo a estocada final na democracia, sendo o primeiro passo  minarem “ a autoridade de centros de poder que compitam com eles, incluindo o Parlamento”.

Deve-se a Albright uma definição simples e concisa do que é um fascista: “alguém que reclama falar em nome de uma nação ou de um grupo, que não se preocupa nada com os direitos dos outros e que está disposto a recorrer à violência e a quaisquer outros meios necessários para alcançar os seus objectivos” (pág.296).

Albright, que iniciou o seu livro com um conjunto de perguntas feitas aos seus alunos, cujas respostas esclarecem o que foi o fascismo em termos históricos, conclui a sua obra reformulando as perguntas, para responder onde podemos encontrar, nos lideres políticos de hoje, os novo arautos no novo fascismo:

“Vêm ao encontro dos nosso preconceitos, sugerindo que tratemos as pessoas de outra etnia, raça, credo ou partido como se não merecessem dignidade e respeito?

“Querem que alimentemos a ira contra quem acreditamos que nos fez mal, esfreguemos os ressentimentos até ficarem em carne viva e ponhamos os olhos na vingança?

“Encorajam-nos a sentirmos desprezo pelas instituições que nos governam e pelo processo eleitoral?

“Procuram destruir a nossa fé em elementos essências à democracia, como uma imprensa independente e uma magistratura profissional?

“Exploram os símbolos do patriotismo – a bandeira, o juramento – num esforço consciente  de nos virar uns contra outros?

“Se forem derrotados nas urnas, aceitam o veredicto ou insistem sem provas de que foram eles os vencedores?

“Fazem mais do que pedir os nossos votos e gabam-se da sua capacidade para resolver todos os problemas, acalmar todas as ansiedades e satisfazer todos os desejos?

“Solicitam os nossos aplausos falando despreocupadamente e com entusiasmo machista sobre o uso da violência para aniquilar os inimigos?.

“Repetem a atitude de Mussolini: “A multidão não precisa de saber” , tudo o que tem a fazer é acreditar e “aceder a ser moldada”?” (pp.304-305).

Quem corresponder à resposta positiva a  estas questões trás consigo e alimenta a semente do novo fascismo.

Como se pode concluir do que nós escrevemos e citámos, não é fácil definir, nem ontem nem hoje, o que é o fascismo.

Nem o fascismo dos anos 30 é repetível na nossa época.

Mas o desprezo pela democracia, pela liberdade, pelo outro, pela verdade, pelas instituições sociais e democráticas, pelos direitos humanos e sociais, é uma carcteristica comum à extrema-direita populista, seja a dos anos 30,seja a actual, mesmo quando, como na Venezuela, se veste  de roupagens pseudo-esquerdistas.

Ao mesmo tempo o apelo à violência e ao ódio, físico ou verbal, a atitudes irracionais, ao  que de pior existe no ser humano, é comum a tudo aquilo que, legitimamente, podemos classificar de fascismo.

Não vamos ver milícias nas ruas perseguindo judeus, negros, comunistas, socialistas ou democratas (ou será que vamos? Bolsonaro já prometeu algo parecido no Brasil...). Hoje as redes socias prestam bem esse serviço.

Não vamos ver a destruição total do formalismo democrático, pois podem bem conciliar o acto eleitoral em sociedades manipuladas por uma comunicação social controlada pelo poder financeiro e politico (Rússia, Turquia, Hungria...).

Ao contrário dos anos 30, em que economicamente o que era viável aos poderes que financiaram o fascismo contra o socialismo, a democracia e os direitos sociais, era a estatização da economia, hoje esses mesmo poderes apostam no neoliberalismo que lhes permite escapar ao fisco, às regras ambientais, à legislação e os direitos laborais e ao controle democrático da sua acção pelos parlamentos.

Este “novo fascismo”, ou “ur-fascismo” ou “populismo”, não precisa hoje de recorrer  ao aparato cénico propagandístico e espectacular dos anos 30. Basta manter-nos alienados, agarrados às redes socias e aos talk shows.

Ao contrário da esquerda, a extrema direita populista conseguiu adaptar-se aos novos tempos e renascer das cinzas, voltando a colocar o mundo á beira do abismo e da barbárie.

Bibliografia:

ALBRIGHT, Madeleine, Fascismo – um alerta, ed. Clube do autor, 2018;

ECO, Umberto, Como reconhecer o fascismo. Da diferença entre migrações e emigrações, ed. Relógio d’Àgua, 2017 (texto original de 1997, numa tradução de grande qualidade de José Colaço Barreiros);

PAYNE, Stanley G., El fascismo, Alianza Editorial , Madrid 1996 (1ª edição em 1980);

PINTO, António Costa, O Salazarismo e o Fascismo Europeu, ed. Estampa;

Sem comentários: