Registámos, em dois posts anteriores, as características históricas do
fascismo e a forma como a investigação histórica dos anos 90 caminhou no
sentido de demonstrar que o fascismo estava morto e enterrado.
Referimos a excepção de Umberto Eco que, remando conta a maré
dominante, explicou num ensaio de 1997, que o fascismo podia ressurgir com
novas roupagens.
Ficámos de explicar quais eram as características, apontadas por
Eco, desse “novo fascismo”, que ele
designa com “Ur-fascismo”.
Depois de analisar o exemplo do fascismo italiano, mostra que o
fascismo não era coerente do ponto de vista ideológica, “não era uma ideologia
monolítica, mas uma colagem de diversas ideias politicas e filosóficas, uma
amalgama de contradições”, ao contrário do nazismo.
Por isso considerava que, se o nazismo não iria reaparecer “como movimento
que envolva uma nação inteira”, pelo contrário o fascismo mantinha condições
para renascer sob novas roupagens.
Escreve Eco que houve “um único nazismo”, mas, em” contrapartida,
“pode-se brincar ao fascismo de muitos modos”, porque o “termo “fascismo”
adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou vários
aspectos, e poder-se-á reconhecê-lo com fascismo”.
Apesar da confusão e da dificuldade em definir fascismo, é “possível
indicar uma lista de características típicas do que poderei chamar o
“Ur-fascismo” ou o “fascismo eterno”. Estas características não poderão ser
ordenadas num único sistema: muitas contradizem-se reciprocamente, e são
típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas basta que esteja
presente uma delas para fazer coagular uma nebulosa fascista”.
E quais são essas características apresentadas no ensaio de Eco?
Ei-las, de forma resumida:
-1. O culto da tradição, embora seja “mais velho do que o fascismo”;
-2. A rejeição do modernismo e do mundo moderno, que também se pode
referir como “irracionalismo”.
-3. O culto da “acção pela acção”: “A acção é bela em si, e portanto
tem de ser realizada antes de e sem qualquer reflexão. Pensar é uma forma de
castração. Por isso a cultura é
suspeita na medida em que se identifica com comportamentos críticos”, atitude
identificada com o “uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”,
“Convencidos”, “Snobs radiais”, “As Universidade são covis de comunistas”(…).
-4. O desacordo “é traição”.
-5. O Medo da diferença. “O Ur-Fascismo é (…) racista por definição”.
-6. A exploração da “frustração individual ou social” , apelando “às classes médias frustradas , sentindo
mal-estar por qualquer crise económica ou humilhação política, assustadas pela
pressão dos grupos sociais subalternos”.
-7. O nacionalismo, com apelo à xenofobia e que procura inimigos
externos e internos que “conspiram” contra a identidade nacional.
- 8 . A defesa face a um inimigo que humilha o “povo” pela “riqueza ostentada”.
- 9 . A critica ao pacifismo.
- 10 . O elitismo de massas e o “desprezo pelos fracos”. Quem se
identifica com o “chefe” ou com “o partido” é o “melhor povo do mundo” e os que pertencem ao
“movimento” são “os melhores cidadãos”.
- 11 . O culto do “herói”, “todos são educados para se tornarem
heróis”.
- 12 . o “machismo”, que implica o “desprezo pelas mulheres” e a
“condenação” da homossexualidade.
- 13 . O “populismo qualitativo”, ou seja, “os indivíduos enquanto
indivíduos não têm direitos” e é o líder que interpreta a vontade do povo. Já
então Eco avisava que no “nosso futuro perfila-se um populismo qualitativo Tv ou
internet, em que a resposta emotiva de um grupo selecionado de cidadãos
pode ser apresentado e aceita como a “voz do povo”. Devido aos seu populismo
qualitativo, o Ur-Fascismo tem de opor-se aos “putrefactos” governos
parlamentares”. E conclui: “sempre que um politico lança dúvidas sobre a
legitimidade do parlamento por já não representar “a voz do povo”, já podemos
dizer que cheira a Ur-fascismo”.
- 14 . “O Ur-Fascismo fala a “neolíngua””, um termo inventado por
George Orwell par o seu romance “1984”, uma crítica ao stalinismo então
dominante entre os movimentos comunistas, mas que, segundo Eco, tem elementos
comuns “a formas diferentes de ditaduras”, referindo o léxico pobre, de frase
feita, com fins propagandísticos e de doutrinação, que procura alterar o
significado da palavra com o objectivo de “limitar os instrumentos para o
raciocínio complexo e crítico”, avisando para a necessidade de estarmos
preparados “para identificar outras formas de neolíngua, mesmo quando toma a forma
inocente de um talk- show popular”.
Conclui Eco que o “Ur-fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais
inocentes . O nosso dever é desmascara-lo e apontar o dedo a cada uma das suas
novas formas –diariamente, em todo o mundo”.
Aquilo que parecia então uma mera divagação intelectual, está hoje mais
actual do que muito.
Muitos dos 14 pontos apontados por Eco estão aí mais do que presentes
no discurso populista de líderes políticos e movimentos de várias vestes e
cores, da Venezuela ao Brasil, da Coreia do Norte à Hungria, da Rússia à
Turquia, das Filipinas à Polónia, da Grã-Bretanha aos Estados Unidos, da França
à Itália….
As redes sociais, que substituem a rua como lugar de manifestação da
violência e do ódio de tipo fascista, estão cheias de um discurso acima
identificado por Eco como o “Ur-fascismo” dos nossos dias :
-o apelo irracional ao ódio contra quem não pensa como nós;
- o discurso saudosista do “antigamente [leia-se por cá, no tempo de
Salazar] é que era bom”;
- a diabolização e ridicularização das ditas questões fracturantes [a
critica à modernidade];
- a disseminação das fake news ( a mentira várias vezes repetida para
se tornar “verdade”);
- a criação de um clima de medo ( exagerando, pela repetição e pelo
destaque, a existência de uma sociedade “dominada pelo crime”);
-a desvalorização do Estado de
Direito, com apelos à judicialização da sociedade, renegando a presunção de
inocência ou fazendo dos tribunais espectáculo, recorrendo à divulgação de
processos em segredo de justiça, conduzindo à defesa de uma justiça popular e a uma justiça feita pelas
próprias mãos, atitude potenciada pelos títulos de tablóides;
- a desvalorização de um pensamento crítico, atacando os
“intelectuais”, o conhecimento cientifico, o papel das universidades “tomadas
pela esquerda”;
- o desprezo pelos fracos, que culpa pela sua fraqueza, “vivendo dos
subsídios”, apenas tolerados com alvo de campanhas de caridade para limpeza de
consciências;
- o nacionalismo exacerbado, cercado de “inimigos” ( os “venezuelanos”,
os “comunistas”, os “islâmicos”, os “terroristas”, os “emigrantes”…);
- a superioridade “democrática” das redes socias, a verdadeira “voz do povo”, como contraponto da
democracia “corrupta” e putrefacta” dos regimes parlamentares e dos políticos;
- etc., etc., etc….
Uma actualização fundamentada do
perigo de um “novo fascismo” está presente na recente obra de Madelene
Albright, “Fascismo um Alerta”.
Historiando a origem histórica do fascismo e mostrando o que este teve
de comum com o comunismo real (na sua versão stalinista) no desdém pela
democracia, encontra diferenças assinaláveis entre as duas ideologias.
Faz igualmente o historial do MacCarthismo e da forma como, durante a
Guerra Fria, os regimes democráticos pactuaram com as mais criminosas
ditaduras, mostrando a forma como, no seio de regimes democráticos sólidos, o
perigo das pulsões fascistas está presente e se pode transformar a democracia
numa “ditadura da democracia”.
Faz um historial recente da presença dessas pulsões fascistas em
regimes actuais, que , mesmo quando de origem ideológica aparentemente
diferente, transportam em si o vírus do fascismo: o recurso à mentira, o
desdém pela liberdade e pela democracia, o carisma do líder, o recurso ou apelo ao
genocídio, o combate à diferença e o nacionalismo exacerbado.
Percorre a história recente do chavismo venezuelano, do regime turco de
Erdogan, da ascensão de Putin, da “democracia iliberal “ de Órban na Hungria, da
liderança omnipresente da dinastia Kim na Coreia do Norte, entre muitas outras
referências a outros regimes “proto fascistas” como o de Sissi no Egipto, o de
Kaczynski na Polónia, o de Zeman na República Checa, o de Duterte nas Filipinas
(só não falando em Bolsonaro porque ainda não era notícia à data da escrita do
livro), chegando à principal preocupação para o seu alerta contra o fascismo, a
situação que se vive nos Estados Unidos com a vitória de Trump.
Claro que nenhum desses regimes é classificado por Albright com “fascista”
( apenas classifica como tal o da Coreia do Norte), mas todos transportam em si
a semente de um novo fascismo, principalmente pela forma como banalizam um
determinado discurso e uma determinada atitude que justifique as pulsões
“fascistas”.
Em muitos desses governos e noutros movimentos de tipo populista por
esse mundo fora, e citando Robert Paxton, da Universidade de Columbia, “ouvimos
ecos de temas fascistas clássicos: medos da decadência e do declínio; afirmação
de uma identidade nacional e cultural; uma ameaça à identidade nacional e à boa
ordem social por parte de estrangeiros não assimiláveis; e a necessidade de
maior autoridade para liderar com esses problemas”( pág.222).
Em comum, Albright encontra nalgumas das atitudes daqueles governos o
caminho para um novo fascismo:
“Rapidamente o Governo que silencia um meio de comunicação acha mais
fácil silenciar um segundo. O parlamento que ilegaliza um partido politico
passa a ter um precedente para banir o seguinte. A maioria que priva
determinada minoria dos seus direitos não para por aí. A força de segurança que
espanca manifestantes e fica impune não hesita em voltar a fazê-lo” (pág.278).
Albright recorda-nos que, como aconteceu ao longo da história, os
fascistas podem chegar ao poder por via eleitoral. Hoje em dia, aliás, não se
atrevem a fazê-lo de outro modo. Geralmente chegados aos poder, vão dando passo
a passo a estocada final na democracia, sendo o primeiro passo minarem “ a autoridade de centros de poder
que compitam com eles, incluindo o Parlamento”.
Deve-se a Albright uma definição simples e concisa do que é um
fascista: “alguém que reclama falar em nome de uma nação ou de um grupo, que
não se preocupa nada com os direitos dos outros e que está disposto a recorrer
à violência e a quaisquer outros meios necessários para alcançar os seus
objectivos” (pág.296).
Albright, que iniciou o seu livro com um conjunto de perguntas feitas
aos seus alunos, cujas respostas esclarecem o que foi o fascismo em termos
históricos, conclui a sua obra reformulando as perguntas, para responder onde
podemos encontrar, nos lideres políticos de hoje, os novo arautos no novo
fascismo:
“Vêm ao encontro dos nosso preconceitos, sugerindo que tratemos as
pessoas de outra etnia, raça, credo ou partido como se não merecessem dignidade
e respeito?
“Querem que alimentemos a ira contra quem acreditamos que nos fez mal,
esfreguemos os ressentimentos até ficarem em carne viva e ponhamos os olhos na
vingança?
“Encorajam-nos a sentirmos desprezo pelas instituições que nos governam
e pelo processo eleitoral?
“Procuram destruir a nossa fé em elementos essências à democracia, como
uma imprensa independente e uma magistratura profissional?
“Exploram os símbolos do patriotismo – a bandeira, o juramento – num esforço
consciente de nos virar uns contra
outros?
“Se forem derrotados nas urnas, aceitam o veredicto ou insistem sem
provas de que foram eles os vencedores?
“Fazem mais do que pedir os nossos votos e gabam-se da sua capacidade
para resolver todos os problemas, acalmar todas as ansiedades e satisfazer
todos os desejos?
“Solicitam os nossos aplausos falando despreocupadamente e com
entusiasmo machista sobre o uso da violência para aniquilar os inimigos?.
“Repetem a atitude de Mussolini: “A multidão não precisa de saber” ,
tudo o que tem a fazer é acreditar e “aceder a ser moldada”?” (pp.304-305).
Quem corresponder à resposta positiva a
estas questões trás consigo e alimenta a semente do novo fascismo.
Como se pode concluir do que nós escrevemos e citámos, não é fácil
definir, nem ontem nem hoje, o que é o fascismo.
Nem o fascismo dos anos 30 é repetível na nossa época.
Mas o desprezo pela democracia, pela liberdade, pelo outro, pela
verdade, pelas instituições sociais e democráticas, pelos direitos humanos e
sociais, é uma carcteristica comum à extrema-direita populista, seja a dos anos
30,seja a actual, mesmo quando, como na Venezuela, se veste de roupagens pseudo-esquerdistas.
Ao mesmo tempo o apelo à violência e ao ódio, físico ou verbal, a
atitudes irracionais, ao que de pior
existe no ser humano, é comum a tudo aquilo que, legitimamente, podemos classificar
de fascismo.
Não vamos ver milícias nas ruas perseguindo judeus, negros, comunistas, socialistas ou democratas (ou será que vamos? Bolsonaro já prometeu algo parecido no Brasil...). Hoje as
redes socias prestam bem esse serviço.
Não vamos ver a destruição total do formalismo democrático, pois podem
bem conciliar o acto eleitoral em sociedades manipuladas por uma comunicação
social controlada pelo poder financeiro e politico (Rússia, Turquia, Hungria...).
Ao contrário dos anos 30, em que economicamente o que era viável aos
poderes que financiaram o fascismo contra o socialismo, a democracia e os
direitos sociais, era a estatização da economia, hoje esses mesmo poderes
apostam no neoliberalismo que lhes permite escapar ao fisco, às regras ambientais,
à legislação e os direitos laborais e ao controle democrático da sua acção pelos parlamentos.
Este “novo fascismo”, ou “ur-fascismo” ou “populismo”, não precisa hoje
de recorrer ao aparato cénico propagandístico
e espectacular dos anos 30. Basta manter-nos alienados, agarrados às redes
socias e aos talk shows.
Ao contrário da esquerda, a extrema direita populista conseguiu
adaptar-se aos novos tempos e renascer das cinzas, voltando a colocar o mundo á
beira do abismo e da barbárie.
Bibliografia:
ALBRIGHT, Madeleine, Fascismo – um alerta, ed. Clube do autor, 2018;
ECO, Umberto, Como reconhecer o fascismo. Da diferença entre migrações
e emigrações, ed. Relógio d’Àgua, 2017 (texto original de 1997, numa tradução
de grande qualidade de José Colaço Barreiros);
PAYNE, Stanley G., El fascismo, Alianza Editorial , Madrid 1996 (1ª
edição em 1980);
PINTO, António Costa, O Salazarismo e o Fascismo Europeu, ed. Estampa;
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