Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA in Público 09/04/2016
“Se queremos salvar a democracia
no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido
algures é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov
nas ruas de Bruxelas.
“Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações do que
revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa foi ao
âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um problema de
democracia. E é.
“Os offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da
fuga ao fisco, uma questão que significa para as democracias a perda de um
princípio básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo
primado da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos
offshores apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um
mau ponto de partida.
“A questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão
económica sólida para que hajam offshores. Para que é que eles servem para a
economia, para a produção, para o emprego, para a indústria, para o comércio,
para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores servem é
para esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem do
dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão desaguar
aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
“O que os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta
realidade, ou com os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da
Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o que podem fazer fazem. Por
detrás desta declaração de impotência — eu estou a falar de políticos
democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas últimas décadas, e
agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos interesses
financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim, porque uma das faces
semivisíveis dos offshores são os biliões que circulam em fundos e outros tipo
de operações financeiras e bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus
ex machina que faz mover os países como marionetas.
“Podem fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo.
E acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a frase
que melhor resume o “problema para a democracia”. E não querem por dois
motivos. Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos europeus são gente
frágil à frente de países fragilizados, uma combinação de que resulta uma
imensa fraqueza para lidar com interesses poderosos, como são os que estão por
detrás e pela frente dos offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de
direita, e em muitos socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias
sobre a economia, sobre o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos
países, que corresponde ao “pensamento único” que tem presidido à política da
Comissão Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a
política de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.
“Este segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de
costume nos mais rudimentares defensores dos offshores que pululam na nossa
direita mais radical, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais. Eles são
reveladores, porque têm a imprudência de dizer aquilo que os de cima da cadeia
alimentar pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram imensamente incomodados
com os “Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos”
falam. E correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o
capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma perversão do comunismo e do
socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar aos poderosos do “outro
lado”. E então é ler como os offshores são uma resposta à tirania fiscal dos
Estados “socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade económica do dinheiro
e das empresas para fluir para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem,
que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O
essencial é que eles são mais uma manifestação normal da liberdade económica e
da luta contra a prepotência dos Estados e das políticas “socialistas” dos
altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme aumento de impostos”, retirou
aos contribuintes qualquer protecção face aos abusos do fisco e só é “liberal”
na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão invisível” que foi possuída pela
família Adams.
“O problema como sempre é o dos alvos e dos intocáveis. Ou melhor:
defender por todos os meios os “intocáveis” de serem tocados e impedir que os alvos
deixem de ser alvos. O objectivo da política do “ajustamento”, policiada pelas
instituições europeias sem estatuto democrático como o Eurogrupo, ou pelo FMI,
em consonância com os “mercados”, foi proteger o sistema bancário, os
“mercados”, o dinheiro que “flui” e, sem o dizer, no mesmo pacote vão os
offshores “contra os quais nada se pode fazer”. E o melhor atestado de
ineficácia da múltipla legislação europeia tão gabada nas suas intenções de dar
“transparência” ao sistema financeiro e combater a corrupção é o que revelam
estes “Documentos do Panamá” e muitas outras estimativas sérias: o dinheiro que
vai para os offshores é cada vez mais. Ponto.
“A solução da questão dos offshores é simples, se tivermos vontade para
a aplicar. E desconfiem de quem venha com muitas complexidades e complicações,
é sempre mau sinal. Insisto, não é muito complicado: trata-se de comparar o
dinheiro dos offshores com o dinheiro dos terroristas. Um rouba, em grande
escala, Estados e povos, o outro mata. Um mata à fome em África, outro nas ruas
de Paris ou em Nova Iorque. Um destrói economias, poupanças, classes médias
criadas com muitos anos e esforços para progredir, outro escraviza povos e
reduz a ruínas países já muito pobres. É uma comparação que admito ser
excessiva, mas, se partirmos dela, talvez possamos compreender (ou não) por que
razão aquilo que se admite em termos de recursos de investigação, penalizações
duríssimas, confisco de bens do crime ou da droga, ou da corrupção ou da fuga
ao fisco, e se aplica ao dinheiro do terrorismo, se pode aplicar ao dinheiro
ilegal dos offshores. Ah! Já estou a ouvir em fundo: “Mas muito desse dinheiro
é legal.” Ai é? Então, qual é o motivo por que em vez de estar inshore vai para
os offshores?
“Deixem-se por isso de falsos espantos e falsas surpresas. Tudo o que
está nos “Documentos do Panamá” não é novidade para ninguém. Como não é
novidade para ninguém o discurso de “não se pode fazer nada”. Mas, se queremos
salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido,
fugido e protegido algures numa caixa de correio humilde de uma casa nas Ilhas
Caimão, ou num cacifo acolchoado de um luxuoso escritório de advogados no
Panamá é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas
ruas de Bruxelas. Faz-nos pior, porque os tiros são-nos exteriores, são do
“inimigo”, e os biliões das Ilhas Virgens são de dentro, dos “amigos””.
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