"UMA IMENSA IRRITAÇÃO E A POLÍTICA DO MEIA BOLA E FORÇA
por Pacheco Pereira
“A expressão "meia bola e força" parece vir do
futebol, um mau augúrio. O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa remete para o
Dicionário de Frases Feitas, de Orlando Neves, que lhe dá o significado de
"desajeitadamente; de qualquer maneira". Acrescenta a génese
futebolística por comparação com "pontapé para a frente e fé em
Deus", e "designa um modo de jogar atabalhoado, sem arte", onde
"a técnica da força se sobrepõe à força da técnica". Parece-me bem,
estamos no terreno certo do que quero dizer. Mais à frente voltaremos aqui.
“Agora vamos a outro lado: a "irritação". Os
portugueses ainda não andam na rua a partir coisas e a deitar cocktails Molotov
à polícia diante do Parlamento como acontece em Atenas. Sejamos justos, como os
portugueses, também a esmagadora maioria dos gregos nunca fizeram tal coisa,
obra de pequenos grupos que tomaram o gosto ao dedo da gasolina. Por cá também
se estão a formar os mesmos grupos, mas ainda não sabem fazer cocktails
Molotov, mas aprenderão porque não é muito complicado.
“Mas, seja como for, a conflitualidade portuguesa ainda está
longe de ser bem medida pela rua, mas é mais que evidente que existe. Está na
fase da zanga e a caminho da imensa irritação. Convém não menosprezar este
caminho, porque a zanga pode ser muito passiva, viver com o desespero, a
depressão e a impotência, mas a irritação é mais complicada, porque ela
transporta uma violência latente muito superior. E os sinais dessa irritação
estão por todo o lado e em crescendo.
“A vox populi moderna chega hoje ao universo mediático, não
tanto na sua forma politizada, mas numa parte mais selvagem, sem regras, nem
educação, nem civilidade, nem moderação. Chega aos gritos. Por exemplo, nos
fora das rádios e televisões, em que supostamente essa vox populi se faz ouvir,
o grau de violência verbal é cada vez maior. Eu sei que é preciso muita
prudência para aceitar esses programas como representativos da vox populi, com
todas as precauções para depurar a parte de manipulação política desses
"locais de fala", onde é habitual alguns militantes partidários mais
empenhados organizarem-se para fazer barragens de falsos "ouvintes" a
telefonar para defenderem o seu clube político e esmagar os outros. Mas, quando
os temas desses fora estão longe da agenda politizada, o que se ouve é a voz
dessa imensa irritação, pura e dura e cruel, vociferando contra os
"políticos", contra "esta democracia", contra as
prepotências dos ricos e poderosos e os "arranjinhos" que fazem em
conluio com os "políticos". Propostas: deviam ir todos presos, devia
"cortar-se-lhes a cabeça", deviam ser proibidos de falar, deviam
viver com salários abaixo do mínimo, deviam ver os seus bens confiscados e
"obrigados a trabalhar", etc., etc.
“Nos casos "mediáticos" da justiça encontra-se
também um crescendo de violência verbal e, embora o terreno pareça diferente, o
facto desses casos se passarem no espaço público sob o megafone de jornais,
rádios e televisões, torna o discurso nestes casos também um discurso sobre o
país e a política. Duas características manifestam-se nestes discursos da vox
populi: uma forte identificação com as vítimas, sejam reais, sejam imaginárias,
e uma vontade quase física de violência punitiva, muito para além da lei. No caso
de Lousada (o desaparecimento de uma criança) e da pedofilia na Casa Pia, pode
ouvir-se nos media propostas de pena de morte, de tortura, de mutilação
("deviam-lhe cortar os dedos um a um"), proibição de meios de defesa
para os arguidos, censura ("Carlos Cruz devia ser proibido de publicar
livros e dar entrevistas"), acompanhadas de tentativas concretas de
agressão.
“Pode argumentar-se que se trata de casos especiais, mas o
contínuo discursivo, a mecânica social e psicológica da descrição das vítimas
que não obtêm justiça versus os poderosos que escapam a tudo, são narrativas
sobre o Portugal contemporâneo e são, na sua essência, sobre a crise, entendida
como uma violência dos "políticos" contra as pessoas comuns, os
pobres, os trabalhadores, o povo. É por isso que o pior que se pode fazer na
actual situação é provocar esta ira poderosa, mais violenta do que qualquer
cocktail Molotov.
“Voltemos ao "meia bola e força". Existe na actual
governação uma forte dose de "pontapé para a frente e fé em Deus", e
de "um modo de jogar atabalhoado, sem arte", onde "a técnica da
força se sobrepõe à força da técnica". E há dois aspectos em que este
"meia bola e força" resultam numa provocação desnecessária, inútil e
perigosa para a irritação que já por aí anda. Um diz respeito à incompetência e
impreparação que nos deu a baixa da TSU, as "gorduras do Estado", o
"colossal desvio" resolvido apenas por meio subsídio de Natal
"irrepetível", a "meia hora de trabalho suplementar", a
saga dos feriados agravada pelo modus operandi do Carnaval.
“Quanto a isto há pouco a fazer, há quem o atribua a um
plano ideológico "neoliberal" e há quem o atribua à ignorância do
país. Existem as duas coisas, mas eu tendo a hesitar em dar grandes roupagens
ideológicas, aquilo que me parece mais fácil de explicar por uma combinação de
ideias na moda (e aí de facto e pela primeira vez a sério, essas ideias
correspondem à caricatura do liberalismo que faz a esquerda) e falta de
experiência e competência, salvo excepções que nem precisam de ser nomeadas
porque são auto-evidentes.
“Mas há um outro aspecto, mais "politiqueiro" nas
provocações, que também tem a ver com o tipo de formação política do topo da
governação, que é comum à liderança do PS, e que faz e pode vir a fazer
estragos consideráveis, corroendo o que de positivo existe em muitas medidas
tomadas recentemente. Voltemos, por comparação, à fase "boa" de José
Sócrates, os seus primeiros três anos, 2005-2008. O "boa" está entre
aspas, porque, do meu ponto de vista, sempre a achei péssima, embora saiba que
muita gente do PSD está hoje esquecida de a louvar. Nos seus primeiros anos, a
narrativa de Sócrates foi muito parecida com a actual: recebeu o país com um
"défice colossal", convenientemente cozinhado pelo Banco de Portugal,
e com esse pretexto, abandonou todas as promessas eleitorais e lançou-se no
controlo do défice. A comparação com a situação actual é legítima visto que as
promessas eleitorais do PSD fizeram-se já no contexto da intervenção da troika
e não antes, pelo que, como em 2005, a "surpresa" pelo que se
"encontra" é fictícia.
“Sócrates obteve alguns resultados no controlo do défice,
não aqueles de que se gabou, mas alguns; reformou a Segurança Social e iniciou
um conjunto de medidas de "reformas" com muitas parecenças com a luta
actual contra as "gorduras do Estado". A retórica política é muito
semelhante. Começou a utilizar os argumentos do populismo e da inveja social,
que são sempre eficazes. Dois casos são exemplares: atacou os juízes e
magistrados e em seguida os professores. Fez o mesmo com os farmacêuticos e os
médicos. Em todos os casos, o discurso foi o mesmo, trata-se de grupos
profissionais privilegiados, com regalias inaceitáveis e pela primeira vez
havia um político com "coragem" para defrontar estes grupos.
“Os resultados estão à vista: alienando todos os aliados que
podia encontrar nesses grupos profissionais para fazer reformas, uniu-os como
nunca se uniram, e acabou por perder quase tudo, reforçando o sentimento
corporativo e bloqueando por muitos anos qualquer mudança nessas áreas. Quando
os ventos mudaram, e Sócrates começou a tombar do seu pedestal, recebeu em
dobrado o preço das irritações que tinha semeado, numa fúria nacional que o
correu do poder e de que o PSD beneficiou eleitoralmente.
“Ora discursos como o do "piegas", a interpretação
do país do Carnaval como opondo diligentes formigas poupadas e trabalhadoras às
cigarras municipais com milhões de dívidas, o apontar dos funcionários públicos
como privilegiados face aos privados, o modo como os militares profissionais
foram convidados a irem-se embora se não concordavam com o ministro e mais mil
e um exemplos são versões actuais do mesmo moralismo social que pode começar
por ter resultados, mas que depois se transforma numa fúria colectiva que volta
para trás com raiva.
“A combinação do "meia bola e força" com um
contexto de irritação nacional, cada vez mais recebido pelos governantes como
uma afronta aos seus desígnios "revolucionários" de mudar o país de
alto a baixo (e este revolucionarismo verbal tem também um papel na retórica
governamental), pode levar a uma certa forma de autoritarismo político, num
contexto de grande crise social, o mais perigoso caminho no meio de uma crise
profunda. Há sinais, como no tempo de Sócrates, mas podem ser epifenómenos e
não the real thing. Benevolamente ainda me fico pelo "meia bola e
força", porque me parece uma explicação mais simples, económica e, acima
de tudo, mais portuguesa. Mas o terreno está a ficar movediço”.
In Público de 25 de Fevereiro de 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário