“(…)
“O que entra em lenta cinza pelas minhas janelas em Pedrogão Grande e
pousa docemente sobre o meu teclado, os meus livros, a minha roupa, é a via
portuguesa para o capitalismo nos campos.
“Sim, falo de um destino histórico, tanto mais português, mais cruel e
inumano, quanto menos se confessa e se entende , quanto mais neutro e sereno
parece.
“O “reordenamento do território”, essa miraculosa panaceia de que
tantos falam e tão poucos percebem, está a rapidamente perante os nossos olhos:
corre à velocidade das chamas e do vento.
“Depois do desastre, muitas dezenas de milhares dos quinhentos mil
pequenos e pequeníssimos proprietários de floresta terão perdido tudo e
perderão, por fim, a terra.
“O que arde em Portugal é o campesinato português, expulso do Alentejo
pelo PS, varrido do centro e do norte pelas Politicas Agrícolas Comuns do PS e
do PSD, despojado de tudo pelo fogo.
“Ardem os velhos de olhos rasos de lágrimas que só a conversa mole de
enfermeiros vestidos de branco consegue arrastar, sobre um fundo de céu em
cinza, para longe de meia dúzia de oliveiras a que dedicaram a vida.
“Ardem os bens dos descendentes de velhos já mortos que deixaram morrer
os velhos e os sobreiros de que cuidavam para plantarem no seu lugar mato,
casas vazias e eucaliptos.
“Haverá-haverá ainda? –outra história possível? Vejo na televisão a
falsa tristeza de quem, lá no fundo, pensa que Clio só saúda os vencedores.
Vejo nos telejornais os olhos serenos que quem atribui subsídios como quem
deita pazadas de terra sobre um caixão.
“ E penso num camponês vizinho meu, do outro lado do Zêzere. Tem
dezassete anos. Dezassete. O pai, falecido, deixou-lhe o que tinha, terra,
gado, máquinas. Perdeu tudo. Vai certamente partir para o litoral, onde não há
agricultura nem incêndios.
“Talvez não tivesse de ir se, em vez de menos Estado, em vez de mais
liberalismo, o interior de Portugal tivesse tido a sorte de ter sido governada
nestes últimos trinta anos, já nem digo por socialistas, bastavam
social-democratas, agentes de uma história mais generosa.
“Os Canadair continuam a voar sobre a minha casa. Já não sinto raiva
nenhuma”.
por Paulo Varela Gomes
…Não, este texto não foi escrito nestas duas últimas semanas. Foi
escrito em 5 de Agosto de …2003!!! (durante o governo de Durão Barroso).
É um excerto da crónica “A Incendiária” de Paulo Varela Gomes,
publicado no livro OURO E CINZAS, editado pela Tinta da China. Em 2016.
..e, infelizmente, Paulo Varela Gomes não está cá hoje para escrever
uma crónica actualizada sobre acontecimentos recentes, porque esse grande
professor e investigador faleceu há um ano.
Mas tudo o que ele escreveu há…14 anos (!!!!), ganha actualidade nos
dias que correm.
Quem nos dera que entre a nossa classe política das últmas décadas
existisse a lucidez de um Paulo Varela Gomes!
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