"A União Europeia transformou a Europa num bordel
Por José Vítor Malheiros
In Público de 21/06/2016
"Era um dia de
Primavera de 1995. Atravessei de carro a ponte sobre o rio Minho, ao pé de
Valença, em direcção à cidade galega de Tuy, e não aconteceu absolutamente
nada. Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida.
"Eu estava habituado a entrar em Espanha depois de parar na
fronteira, esperar numa bicha interminável de carros e camiões, mostrar o
passaporte, responder a perguntas dos guardas e deixar o carro ser revistado
antes de poder seguir caminho. E a travessia desta fronteira despertava sempre
recordações de antes do 25 de Abril, onde a espera era ainda mais demorada, as
perguntas mais agressivas, os polícias mais desagradáveis e as revistas mais
rigorosas, principalmente para os jovens que tinham de apresentar os seus
documentos militares em ordem e podiam estar a preparar-se para fugir à guerra
colonial.
"Foi por isso que atravessar a ponte e entrar em Espanha sem
ver um único polícia, sem ver um posto de fronteira, sem mostrar um documento,
foi uma experiência inesquecível.
"Na altura eu era ainda um ingénuo adepto da União Europeia e
aquilo era para mim a Europa. Não só a liberdade de circulação, mas a
corporização da própria liberdade dos cidadãos, da confiança na sociedade, da
cooperação e da solidariedade entre os estados.
"Eu era então, como me considero ainda hoje, um europeu e um
europeísta. Nascido entre dois países e duas línguas, educado entre quatro
línguas, habituado a desconfiar de todos os nacionalismos, a ideia de uma
Europa que transcende os seus países sempre me foi cara.
"É por isso que, na próxima quinta-feira, quando conhecermos
os resultados do referendo no Reino Unido, eu espero ardentemente que o
resultado seja a vitória do “Brexit”.
"Não porque penso que o Reino Unido vá ficar melhor fora da
UE. Não porque pense que a UE vai ficar melhor sem o Reino Unido. Mas apenas
porque espero que a saída do Reino Unido seja o choque que irá provocar o abalo
político, o exame de consciência e o toque a rebate democrático de que a União
Europeia precisa para se reformar de forma radical e para se reconstruir, num
formato e com regras diferentes, sob o signo da decência. E não penso que isso
seja possível sem uma vitória do “Brexit”.
"O presidente do Parlamento Europeu, o socialista Martin
Schulz, já disse: “Seja qual for o resultado [do referendo], teremos
necessidade de uma reforma integral da União Europeia com regras claras.” Mas o
problema é que já ouvimos dizer a mesma coisa noutras circunstâncias para tudo
ficar na mesma. Ouvimo-lo dizer depois da guerra do Iraque, da crise financeira
de 2008, da crise das dívidas soberanas, das políticas de austeridade, da crise
dos refugiados. Mas sabemos que não podemos acreditar em nada do que sai da
boca dos dirigentes da UE.
"A questão é que a UE não é aquela associação entre iguais
que nos venderam, empenhada no progresso de todos os países e no bem-estar de
todos os cidadãos, no pleno emprego e na segurança dos trabalhadores, na paz
mundial e na promoção da democracia.
"A questão é que a UE é apenas uma máscara que disfarça o
domínio de um grande grupo de países por um pequeno grupo de países, numa nova
forma de ocupação que usa a finança como instrumento de submissão, como antes
se usavam tanques.
"A questão é que a UE é uma organização antidemocrática, que
não só é governada por dirigentes não eleitos e não removíveis, da Comissão
Europeia ao Banco Central Europeu, como construiu ardilosamente uma camisa de
forças jurídica, sob a forma de tratados irreformáveis de facto, através da
qual manieta e subjuga os Estados-membros e lhes impõe políticas que estes não
escolheram, mas não podem recusar.
"A questão é que a UE e as suas instituições se transformaram
na tropa de choque do poder financeiro mundial e da ideologia neoliberal e,
apesar das suas juras democráticas, impõem a agenda asfixiante da austeridade e
proíbem de facto os países de prosseguir políticas nacionais progressistas
mesmo quando elas são a escolha democrática dos seus povos.
"A questão é que a UE, autoproclamado clube das democracias e
dos direitos humanos, acolhe no seu seio sem um piscar de olhos países que
desrespeitam os direitos mais básicos e adopta no plano internacional a
Realpolitik de se submeter aos mais fortes, obedecer aos mais ricos e fechar os
olhos aos desmandos dos mais agressivos.
"A questão é que a UE perdeu o direito de reivindicar
qualquer superioridade moral quando continuou a atirar refugiados para a morte
mesmo depois de ter chorado lágrimas de crocodilo sobre a fotografia de uma
criança afogada no Mediterrâneo. Hoje, tenho vergonha de pertencer a este clube
e não gosto desse sentimento. Será isto isolacionismo? Pelo contrário. O que eu
e muitos cidadãos europeus exigimos é a solidariedade entre países que a União
se recusa a praticar.
"Há pessoas pouco recomendáveis do lado do “Brexit”? Há. Mas
do outro lado também. E na UE não faltam pessoas pouco recomendáveis, a começar
pelo senhor Jean-Claude Juncker, símbolo da evasão fiscal e da imoralidade
política.
"A questão é que a União Europeia não é a Europa dos valores
que sonhámos. A UE capturou essa Europa e transformou-a num bordel. O sonho
transformou-se num pesadelo.
"A questão é que a União Europeia se tornou o ninho da
serpente e deve ser desmontada peça por peça. Espero que o referendo britânico
possa ser o primeiro passo".
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