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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Respigo da Semana - Pedro Tadeu no DN:

Os trabalhadores já não contam

por PEDRO TADEU

Diário de Notícias de 12 Outubro 2010

"Uma das novidades desta crise foi a de um governo dirigido por um partido com nome de socialista ter decretado uma redução de salários na função pública. Não vou discutir agora a justeza instrumental da medida, o seu alegado acerto para resolver um problema orçamental do Estado. A questão que levanto agora é outra e prende-se com o que penso ser um efeito mais profundo, mais grave e que se esconde por detrás da mera necessidade de redução do défice público.

Já passaram os tempos dos empregos garantidos para toda a vida e dos salários que tinham como referencial o ritmo da inflação, mesmo quando não havia aumentos. O final desses tempos concretizou-se apenas (e isso, claro, já não foi pouco) em reduções de direitos sociais, pontuais degradações do poder de compra ou perda de garantias, eventualmente discutíveis à luz das teorias mais recentes sobre a economia de mercado. Agora é muito pior.

A actual redução de salários na função pública que José Sócrates anunciou - e que, por efeito de contaminação, é capaz de vir a estender-se a grande parte do sector privado - acontece também por já não existirem outros instrumentos de que antes o Estado dispunha para resolver os seus problemas financeiros. Um exemplo: não podemos desvalorizar a moeda nacional.

É muito diferente decidir reduzir salários por causa de uma crise económica compreensível, por causa de uma guerra, uma epidemia mortal, uma calamidade natural, uma tragédia de qualquer tipo que afecte profundamente o funcionamento da economia. O que acontece não é nada disso.

O que acontece é a decisão de reduzir salários resultar da aceitação de cumprimento de uma meta para um défice decidida na Alemanha e para enfrentar uma escalada de juros impulsionada por misteriosas agências de rating. Ou seja: o que há de novo nesta medida é que aumentar ou reduzir salários deixou de ser uma medida de política social.

O que acontece agora é que aumentar ou reduzir salários passa, com o PS, a ser um instrumento financeiro, utilizado como se fosse uma mera taxa que se pode subir ou descer conforme os caprichos insondáveis de quem comanda o Estado. As pessoas, os trabalhadores, já não contam para essas contas. Até agora ainda valiam qualquer coisita.

A transformação do trabalho em pura mercadoria de valor especulativo é a modificação mais profunda que vi acontecer em Portugal desde o 25 de Abril ou, vá lá, desde a entrada na CEE. Só esta transformação, feita em restrita decisão palaciana, é uma autêntica mudança de regime. Os portugueses querem-na? Acho que não".

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