(foto do jornal Público)
Tive o privilégio de assistir a várias comunicações de Medeiros
Ferreira, em congressos vários sobre história contemporânea, organizados umas
vezes pela Universidade Nova, outras pelo ISCTE, algumas pela Associação de
Professores de História.
As suas intervenções foram sempre das mais inovadoras e heterodoxas,
baseadas numa aprofundada reflexão e numa cuidada informação.
Todas as suas comunicações foram fundamentais para pensar o mundo em
que vivemos de forma aberta e criativa.
Tive ainda o privilégio de, numa dessas ocasiões, ter trocado algumas
palavras com ele, verificando então a sua postura afectiva e humilde, muito
rara entre as nossas elites culturais.
Sempre ouvi com atenção as suas ponderadas e fundamentadas
participações em debates televisivos e a sua presença vai fazer falta neste
tempos de pensamento único.
Um ano antes do 25 de Abril, entre 4 e 8 de Abril de 1973, realizou-se,
em Aveiro, o 3º Congresso da Oposição Democrática.
Medeiros Ferreira enviou, do exilio, uma das mais premonitórias comunicaçõesentão apresentadas, lida pela sua esposa.
Essa comunicação previa o papel fundamental que as Forças Armadas iriam
ter no derrube do regime ditatorial e na instauração da democracia.
Deve-se a esse mesmo artigo a célebre trilogia que veio a ser usada
para definir a revolução: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, os célebres
três D’s, ao qual ele acrescentava o termo “Socializar”.
Era ainda evidente, nesse artigo, a importância dada à opção Europeia
do futuro de Portugal, dando ainda especial importância a um eixo
Europeu-Africano que teria Portugal como ligação.
Na altura essa comunicação não foi muito bem aceite, nem levada a
sério, por grande parte da oposição, mas hoje essa comunicação, à luz da
história, ganha outra importância e é reveladora da credibilidade do pensamento
de Medeiros Ferreira.
É em homenagem a esse socialista histórico que hoje divulgamos hoje
aqui, e na integra, essa comunicação:
DA NECESSIDADE DE UM PLANO PARA A NAÇÃO
Por José Medeiros Ferreira
Neste último quarto de século o País assiste, desorientado, à
justaposição de problemas que se lhe põem, os quais isolados uns dos outros já
seriam graves e juntos parecem insolúveis. O regime é responsável por essa
acumulação e a natureza do Estado Novo leva a que o actual Governo se remeta a
um pacato empirismo, preferindo a rotina da crise às medidas capazes de
resolverem os problemas portugueses. Todavia aproximam-se para Portugal prazos
inadiáveis para a resolução das suas dificuldades. Estas podem-lhe alterar a
alma e a fisionomia. A Nação encontra-se em jogo e com ela o destino das
classes sociais que a habitam e a informam.
Na realidade, no preciso momento em que o processo de integração
europeia se acelera e nos abrange, com riscos a médio prazo, mas com enormes
vantagens a longo, no caso de estarmos preparados, encontra-se o País a contas
com uma guerra colonial longa de mais de dez anos. O que foi falta de previsão
nos anos 50, revelada na ausência de um processo original de descolonização da África
portuguesa, tomou-se, com o aparecimento em Angola, Moçambique e Guiné de
movimentos de independência dispostos à luta armada para a conseguir, falta
política grave do regime perante a Nação. E hoje, decorridos mais de dez anos
sobre o começo da guerra colonial, o Estado Novo está paralisado perante o
problema. Mais do que determinação de continuar a guerra colonial, o discurso
de Janeiro do Presidente do Conselho revela tal paralisia. O regime não
encontra outra saída do que a guerra e esta não constitui uma.
Está pois paralisado o regime e os interesses que lhe animam a
existência perante o problema colonial, mas não o poder estar o País. Este tem
de impor urgentemente uma política de descolonização.
DESCOLONIZAR
Nesta fase da presença de Portugal no Mundo a descolonização Impõe-se.
Mas trata-se de descolonizar no preciso momento em que decorre a integração
europeia e mais intensa ligação de Portugal ao continente. Os processos estão
aliás ligados, e ligados a mais de um título.
Com efeito, a Europa, como um todo, tende a interessar-se pela Africa e
nesta fase da construção europeia três países são possuidores de chaves para
aquele continente: a França, Portugal e a Inglaterra. Sem querer ir mais longe,
diga-se que o nosso processo de descolonização será fundamental para a consolidação
da existência de uma zona económica e política abrangendo grande parte dos
países europeus e africanos. Neste preciso ponto convém ser lúcido e ter a
coragem de defender posições adversas a gregos e troianos.
Respeitadas as soberanias no que elas têm de essencial, assegurado um
sistema de harmonização entre regiões ricas e regiões pobres como entre países
ricos e países pobres e facultados às populações os instrumentos de
participação e de controle das decisões que lhes digam respeito, a zona a criar
entre países europeus e países africanos afigura-se-nos riquíssima de
possibilidades para ambas as partes e capaz de se impor ao mundo. Poderá mesmo
vir a constituir resposta adequada à ingerência de duas grandes potências nos
assuntos europeus e também africanos que são causa de precária soberania destes
em relação àqueles.
Ora vários países poderão tirar vantagens de um enfraquecimento
simultâneo, mesmo que temporário, da dominação portuguesa nas colónias e da
presença dos movimentos de independência daqueles territórios. De qualquer
maneira seria a independência destes países que se encontraria comprometida.
Sendo as coisas como são, não vejo o menor progresso histórico se a influência
da Africa do Sul ou da Rodésia crescerem em Moçambique, ou se em Angola, após
os portugueses, forem americanos ou russos, mais provavelmente aqueles do que
estes, a imporem a sua lei e os seus interesses. Por independência entende-se
coisa bem diferente. Deste modo a presença de Portugal, melhor entendida, pode
facilitar o acesso das colónias a formas de independência mais interessantes do
que aquelas capazes de passarem de todo por cima da lusa vontade. Quero dizer
na minha que Portugal pode funcionar em
relação a esses novos países como factor de uma maior independência destes.
Não há dúvida que em relação à Africa do Sul ou à Rodésia assim é. Mais
delicado se torna provar que no que diz respeito aos movimentos nacionalistas
Portugal poderá ser garante de independência. E no entanto é simples: pela
força das circunstâncias os movimentos de independência do tipo daqueles que
operam nas colónias são geralmente debitores de potências estrangeiras que nas
fases mais duras da luta os apoiaram materialmente. Aconteceu-nos o mesmo
quando, invadidos pelas tropas napoleónicas, nos enfeudámos à Inglaterra. Não
se trata pois de algo que lhes seja exclusivo, mas urge agir em consequência.
Quer dizer: um diálogo entre Portugal e os movimentos nacionalistas deve
proporcionar a estes as condições para a diminuição das influências tecidas no
decorrer deste período de guerra e que possam revelar-se contrárias aos
interesses dos territórios em questão.
Portugal deve pois funcionar em relação aos novos países assim criados
como factor de uma maior soberania destes, sobretudo no período sempre decisivo
do acesso à independência.
SOCIALIZAR
Tal descolonização, assim como as alianças imediatas, depende, claro
está, do regime económico, social e político que vigorar em Portugal.
Quer-nos parecer, pela paralisia que o regime demonstra perante a
necessidade de uma solução política para o problema colonial, que a actual
hierarquia das classes sociais em Portugal não permite correr os riscos de uma
medida de independência para as colónias. As classes dirigentes impõem-nos
deste modo a continuação da guerra sem outra perspectiva que a do adiamento da
solução política. (E se o Governo de Caetano tenta ladear a questão política da
independência pela via administrativa da descentralização, tal linha tem mais a
ver com a imaginação política do seu autor do que com a inteligência da
situação. Mais imaginativa do que verdadeiramente inteligente é ainda a ideia
da comunidade luso-brasileira. Estes só se não puderem é que não nos comem as
papas na cabeça...).
Temos assim que as actuais classes dirigentes não são capazes — nem
permitem— de fornecer solução ao problema colonial. Como este problema não pode
continuar no ponto em que está urge pois redefinir outra relação a estabelecer
entre as classes no interior da Nação para uma melhor presença portuguesa no
Mundo.
É evidente que a descolonização, por menor que ela seja, trará
problemas de reajustamento interno, quer no que diz respeito às actividades
económicas quer no que diz respeito à relação de forças entre as classes. Deste
modo, o Estado, naquilo em que depende destes fenómenos, não poderá ficar
alheio a tal modificação. Isto é, num projecto profundo de descolonização deve
estar presente aquele de socializar Portugal. Aqui o estabelecimento de um “écran”
entre os dois fenómenos é ainda política das actuais classes dirigentes.
Não se julgue porém que a alteração da relação de forças entre as
classes, provocada pela independência das colónias, será suficiente para, por
si só, e sem luta interna, instaurar um regime socialista. Torna-se pois
preferível falar de avanço das estruturas
socializantes e não de regime socialista, que é coisa em si bem diferente.
Assim, no que diz respeito ao avanço das estruturas socializantes, este
pode efectuar-se, e deve efectuar-se, simultaneamente ao processo de
descolonização e por aí será independente da instauração ou não no resto da
Europa de regimes socialistas. Tal avanço das estruturas socialistas em
Portugal constitui mesmo condição para o fortalecimento do País face à Europa.
Já a instauração de um regime socialista num só país da Europa ocidental como
Portugal parece mais difícil. De qualquer maneira, o socialismo que for instaurado
num só país será sempre diference daquele que for criado no espaço mais vasto e
mais apropriado para tal que é o espaço europeu.
Acresce que o socialismo possível num só país como Portugal ficará
sempre aquém daquele que for construído à escala europeia. Não se deve, pois,
confundir avanço das estruturas socializantes com a implantação de um regime
socialista. Para bem deste.
Acontece que a construção europeia, com o seu corolário que é o da independência
dos países do velho continente em relação aos Estados Unidos da América e em
relação à União Soviética ou a qualquer outra potência que se venha a constituir,
cria condições para a instauração de um novo tipo de socialismo na Europa que
não seja ameaçado nem por uns nem por outros. A fase de desenvolvimento
económico, social e político da maior parte dos países europeus também é indicativa
das possibilidades materiais e humanas de se construir aqui um socialismo
diferente e mais avançado do que aquele praticado noutros espaços.
Tal não impede que em Portugal se faça avançar o projecto socialista
antecipadamente e por via autónoma. Mais cedo ou mais tarde a Europa será
defrontada à existência no seu interior de países com estruturas de tipo
socialista. Cada país tratará de impor as suas opções internas e para tal será
fundamental possuir trunfos suficientes para se fazer aceitar soberanamente no
concerto europeu. Portugal possui alguns. E, neste caso como em muitos outros,
a determinação política é arma fundamental. Deste modo, se no processo do
avanço das estruturas socialistas em Portugal as classes trabalhadoras tiverem
efectiva participação e se instrumentos democráticos lhes forem atribuídos,
encontrar-se-ão mobilizadas as energias populares tão necessárias para a defesa
do plano nacional. O plano nacional será ainda o melhor para conquistar e
manter liberdades, pelo menos enquanto a Europa for comandada pelos interesses
capitalistas.
DESENVOLVER
Mas a descolonização e o avanço de estruturas socializantes não são, só
por si, garantia da independência nacional, e não será grande profecia antever
dificuldades para o país no seguimento da descolonização. Estas dificuldades
serão mesmo aumentadas se se continuar a subalternizar as classes trabalhadoras
às classes detentoras do capital.. Se, pelo contrário, o avanço de estruturas
socializantes for efectuado de molde a alterar a relação de forças existentes,
e a promover à dignidade política a lógica dos interesses das classes
trabalhadoras, melhores condições de ultrapassagem das dificuldades criadas
pela descolonização estarão encontradas.
De qualquer das formas, para um país de território reduzido como é o
nosso impõe-se uma política acelerada de desenvolvimento económico. Ou seja, a
independência da Nação e a presença de Portugal no Mundo dependerão do
fortalecimento do território pátrio com equipamento capaz de o valorizar para
além da sua dimensão. Quanto mais pequeno é o território de uma nação mais
equipado deve ele ser. Só assim o equilíbrio com outras nações ficará
restabelecido e o plano nacional garantido. O avanço das estruturas
socializantes deve pois fazer-se tendo em vista uma aceleração do crescimento
económico português. Certo é que não haverá desenvolvimento sem que se libertem
as energias da sociedade portuguesa, e o avanço das estruturas socializantes
também será isso.
As actuais classes dirigentes têm tentando fazer crer que o principal
problema português é o do desenvolvimento. Será a partir do desenvolvimento
económico que todos os problemas poderão ter resolução: desde a democratização
de Portugal à descolonização de tudo seria capaz o desenvolvimento.
Ora, assim não acontece e a experiência ensina-nos que situações
existem em que é a prévia resolução doa problemas políticos e sociais que
permite o pleno aproveitamento das potencialidades económicas dos países.
Nem outro significado tem o impasse desenvolvimentista do Governo,
senão o de provar que, chocando-se os interesses dos grupos financeiros e
industriais dominantes, impossível será um plano para a Nação.
O enlace de Portugal na Europa exige que a
Nação se prepare criteriosamente. O desenvolvimento económico é tarefa tão
importante para a comunidade portuguesa como a defesa militar, e assim como
esta não se delega em particulares aquele não pode a estes estar sujeito. Devem
pois os particulares operar no âmbito definido pela Nação.
DEMOCRATIZAR
É, aliás, no avanço das estruturas socializantes e na definição e
execução de um plano de desenvolvimento que a democracia aparece como condição
de êxito e às quais as suas formas devem adaptar-se.
Se se enquadrar os problemas portugueses à luz da continuação de
Portugal no Mundo, pode aparecer subalternizado o papel dos instrumentos
capazes de levarem para a frente o projecto de continuar a Nação. Porém, se
prescrutarmos os anseios internos do corpo nacional torna-se evidente que a
grande união dos portugueses se faz em torno da conquista das principais
liberdades democráticas. A instauração de formas democráticas será pois
exigência que um verdadeiro poder antifascista e anticolonialista não poderá
adiar.
Na realidade, a permanência do regime do Estado Novo gerou no seio da sociedade
portuguesa um profundo movimento de aspiração à prática das liberdades públicas
sempre negadas pela sua política terrorista. Criou-se assim, em tomo das
liberdades democráticas, um elemento ideológico fortíssimo que tem expressão
nacional e é interclassista. Nenhum plano para a Nação poderá ladear este
problema propriamente político.
A democratização da sociedade portuguesa não só constitui imperativo
político como ainda encontra na necessidade de definir um projecto nacional
razão da sua urgência.
Contudo, deve a democratização da sociedade portuguesa ir além das
formas clássicas que a democracia tem tomado, e que são ainda formas
limitativas de a entender. Trata-se não só de multiplicar os instrumentos de
intervenção a nível nacional mas ainda de reestruturar os poderes locais e regionais
como órgãos fundamentalmente democráticos e decisivos nos espaços respectivos.
Só assim algumas liberdades ficarão asseguradas.
Em sintese, a actual situação de Portugal aponta três ordens de
soluções que convém trilhar simultaneamente: trata-se de descolonizar, de
socializar e de desenvolver. Tais metas devem ser alcançadas através de uma
profunda democratização da sociedade portuguesa.
A nossa contextura histórica é assim qualitativamente diversa da da
maioria dos outros países a que nos poderíamos referir. Exemplificando, como
temos de descolonizar não estamos nas mesmas condições que a Espanha (a
independência para o Sara espanhol não trará sobressaltos de maior ao país
vizinho), como temos de socializar não estamos em situação de igualdade com a Hungria,
com a Suécia ou com a Jugoslávia, e como temos de desenvolver, estando muito
aquém da França, não estamos porém ao mesmo nível de Marrocos. Também não somos
um país acabado de nascer, situação que pode favorecer a coesão nacional. Não
estamos por conseguinte na mesma fase histórica que a Argélia.
Acresce que, Portugal, país europeu, não tomou a devido tempo as formas
de democracia política que governam os demais Estados de além-Pirenéus. Estes
avançaram na experiência democrática exercitando em maior ou menor grau a maior
parte dos corpos constituídos da Nação na prática da participação económica,
social e política dentro do sistema geral da democracia parlamentar. Neste
momento, e há quarenta anos, o Parlamento é em Portugal uma caricatura e a sua influência
nula na Nação. Também não se encontram outras formas de participação
democrática do povo português na vida nacional. A existência de partidos
políticos não governamentais é interdita, obrigando-os assim o Estado Novo à
clandestinidade, pelo que a influência deles na vida da Nação é reduzida. Deste
modo, à excepcionalidade da problemática portuguesa junta-se a diferença substancial dos instrumentos políticos
para a resolver.
A conjugação simultânea dessa problemática tece pois uma contextura histórica
radicalmente original e postula a necessidade de um plano global sobre Portugal
e o seu destino no mundo.
OS FINS E OS MEIOS
Encontramo-nos assim ao mesmo tempo perante a questão dos fins a
atingir e a dos meios a utilizar. E embora não me pareça que o problema dos
meios possa fazer parte desta tese não quero todavia deixar certas coisas por
dizer.
Oferece-se ainda a Portugal neste instante a possibilidade de resolver
os seus conflitos de maneira excepcional, quer no que diz respeito ao tipo de
resolução desses conflitos quer no que diz respeito aos meios a pôr em acção
para tal. Assim, ainda poderemos descolonizar de forma exemplar (se bem que a
guerra colonial já tenha criado uma triste hipoteca), fazendo com que as
relações futuras entre Portugal e os novos países se estabeleçam em termos de
ultrapassagem dos modelos existentes. Poderemos ainda fazer avançar certas
estruturas socialistas, independentemente do processo europeu. Também no que
diz respeito à democratização da sociedade portuguesa poderemos, observando os
limites das formas democráticas clássicas, dar a tal processo instituições mais
avançadas do que aquelas existentes noutros países. Será certamente difícil mas
valerá a pena. Que melhor forma poderíamos ambicionar para continuar Portugal?.
Uma outra via ainda se nos oferece e esta é similar à da Europa,
seguindo assim com atraso, mas avançando apesar de tudo. Uns chamam a tal
processo liberalização, outros desblocagem política, outros revolução
democrática e nacional. Evidentemente que existem diferenças de conteúdo entre
estas expressões. Mas todas elas privilegiam meios semelhantes. É a chamada via
ordinária, aquela da França, da Itália, da Suécia ou do Chile.
Por enquanto é ainda o regime do Estado Novo que domina, ou seja a
situação é insuportável. Nem descolonização nem socialização nem desenvolvimento.
Multo menos democracia. Uma resposta global aos actuais interesses dominantes
impõe-se. Encontramo-nos, pois, perante esta questão: que forças sociais,
económicas, políticas ou culturais podem meter ombros a tal empreendimento ?
Sem responder a tal pergunta, destaco das várias componentes do corpo
nacional duas realidades de ordem diferente que estão destinadas a tomar uma
importância decisiva no futuro do Pais:
Portugal encontra nas suas classes trabalhadoras o melhor veículo para
a sua continuação como Estado independente e é desta força social que pode
resultar um projecto global para a Nação ou pelo menos nela apoiado.
Banidas sistematicamente pelo Estado Novo da cena política, as classes
trabalhadoras portuguesas têm encontrado múltiplos obstáculos à sua organização
autónoma e diversa e ainda mais na prossecução dos seus interesses. As enormes
energias que a sua actuação poderia ter trazido à Nação foram contidas e dispersadas
pela política repressiva das actuais classes dirigentes. O País necessita,
porém, para a sua própria sobrevivência soberana, de aproveitar ao máximo as
capacidades dos grupos sociais constituídos. As classes trabalhadoras
representam a grande maioria da população e asseguram o desenvolvimento do
Pais. O deserto organizacional legal das classes trabalhadoras deve pois dar
lugar a uma política de fomento neste campo. Como é sabido muito de Portugal se
jogará, aqui.
As classes trabalhadoras aparecem pois como a força social do futuro.
No entanto uma instituição existe no presente que forçosamente estará no
caminho das forças democráticas, seja para impedir o seu desenvolvimento seja
para apoiá-lo. Mas não se pode fazer de conta que ela não existe. Trata-se das
Forças Armadas.
Ora, as Forças Armadas são, hoje por hoje, uma instituição
essencialmente nacional. Prescrutando o conjunto dos corpos constituídos da
sociedade portuguesa, diremos até que é o Exército a instituição que mais se
confunde com a Nação. E, embora o Exército seja efectivamente um instrumento da
política das classes dirigentes, a instituição, esta, enquanto tal, é
interclassista e nacional.
Semelhante natureza decorre da existência de um serviço militar
obrigatório que torna presentes todas as classes sociais no seio da
instituição. Donde o seu carácter interclassista. Por outro lado, no momento em
que as actividades económicas, sociais, políticas e culturais tendem ao enlace
regional, intercontinental e mesmo mundial, a defesa do território pátrio
aparece, paradoxalmente, como anacrónica, porém essencial para a manutenção do
quadro nacional. Donde o carácter eminentemente nacional das Forças Armadas.
Estará no entanto na lógica da instituição a possibilidade de apoiar
movimentos nacionais que se proponham resolver politicamente o problema das
colónias, admitindo a independência destas, para melhor se proceder ao
levantamento das energias patrióticas na perspectiva da reestruturação do
espaço europeu?.
As Forças Armadas, para além da função nacional de defesa do
território, serão sensíveis às lutas que se desenvolvem no corpo da sociedade
portuguesa? A tensão nelas existente entre o todo Nação e as partes
constituintes desta que são as classes sociais levará ao aparecimento de uma
filosofia económica e social sobre a sociedade portuguesa capaz de permitir o
apoio ao avanço das estruturas socializantes ?
Não estamos aptos a fornecer resposta definitiva a tais interrogações.
Note-se contudo que eu me refiro a linhas estruturais subjacentes à
instituição militar e não à efectiva função política dessa instituição perante
o Estado Novo. O contrôle do regime do Estado Novo sobre o Exército foi
completo e detalhado até ao aparecimento da luta armada nas colónias. A própria
guerra, porém, se bem que obrigando as Forças Armadas a tarefas medíocres e
incompatíveis com a sua função nacional, deu-lhe dimensões sem precedentes na
história pátria. Convém deixar claro que as classes dirigentes sentiram o
perigo que corriam e arquitectaram novos processos de contrôle. Diversos tipos
de osmose social entre as classes dirigentes e o corpo de oficiais foram
criados e, por outro lado, certos fenómenos decorrentes do próprio tipo das
operações militares que a guerra colonial desenvolve auxiliaram o contrôle do
regime no próprio terreno da instituição militar. Foram assim fomentados
precocemente o engrandecimento de corpos especializados, tais como o dos
pára-quedistas, diversos tipos de comandos, fuzileiros navais e outros mais,
que são ao mesmo tempo a expressão de uma necessidade técnica operacional e de
uma política de enquadramento do regime sobre as próprias Forças Armadas.
Desta forma uma síntese foi operada entre um Exército que é a expressão
do serviço militar obrigatória e as forças especiais de intervenção formadas
por profissionais ou por voluntários. As Forças Armadas, como instituição
nacional, encontram-se assim enquadradas e controladas pelo regime. Repare-se
que o aproveitamento pelo regime da mobilização requerida pela guerra colonial
se processa para além do serviço militar obrigatório. A ninguém passa desapercebido,
que mais não seja pela leitura atenta dos jornais censurados, a importância que
a antiga Liga dos Combatentes tomou e a disputa das várias organizações
para-militares no recrutamento de elementos vindos da guerra colonial. O regime
fortalece assim grupos armados fora do Exército. Reside aqui aliás uma séria
ameaça para a instauração e o desenvolvimento da democracia em Portugal.
De qualquer modo as Forças Armadas têm prestado enormes serviços ao
Estado Novo. O último dos quais foi a oferta de dez anos de manutenção dos
territórios africanos aprisionados ao regime colonial. O mesmo é dizer que as
Forças Armadas já deram ao Governo um período excepcional para a resolução
política do problema colonial. E diga-se em abono da verdade que oferecer dez
anos para resolver politicamente uma guerra é raríssimo nos tempos que correm.
Mas, se foi possível manter o esforço militar durante esses dez anos,
tal não aconteceu sem criminosos efeitos negativos no desenvolvimento geral do
País e na posição de Portugal perante o Mundo. Vejamos as principais
consequências da guerra colonial no que diz respeito às relações do Exército
com a Nação:
Uma guerra colonial tão prolongada vicia por forma assaz profunda o
organismo militar português, especializando-o num determinado tipo de operações
militares de contra-guerrilha e empurrando-o cada vez mais para os braços das
forças reaccionárias e antipopulares a coberto da chamada defesa da retaguarda.
A contra-subversão, conceito reaccionário, tornou-se complemento da contra-
guerrilha, actividade colonialista. Ou seja, a função nacional do Exército
encontra-se subalternizada e este controlado pelas forças reaccionárias. As
Forças Armadas isolam-se assim do todo nacional e são impedidas por tais
funções de se orientarem para o aperfeiçoamento do sistema defensivo, tendo em
vista ataques ou meras pressões do exterior. Sem querer avançar muito na
matéria, diga-se que o atraso português é notório em relação, por exemplo, ao
Exército espanhol.
A muitos pode parecer descabida tal preocupação. Mas numa época em que
se aproxima a reestruturação do espaço europeu com possibilidades combinatórias
várias, desde a manutenção dos Estados nacionais a uma intensa regionalização
ligada a poderes transnacionais, até à coexistência de Estados nacionais com
poderes regionais mais avançados, a existência de um Exército forte, ligado às
classes trabalhadoras e verdadeiramente representativo do querer nacional
toma-se indispensável —ou pelo menos será um factor importantíssimo — para que
Portugal se faça respeitar e seja considerado como um Estado soberano perante a
Europa e face à Espanha. Nesta perspectiva, a guerra colonial é adversa de
melhor função nacional para o Exército.
Mas a própria importância que as Forças Armadas venham a adquirir no
início ou na execução de um plano para a Nação, já de si será significativa do
maior ou menor preenchimento da cena nacional por parte dos instrumentos propriamente
políticos como sejam os partidos ou outras formas de organização cívica. Ou
seja, o papel das Forças Armadas, sempre decisivo num processo de reestruturação
da Nação, encontra condições de desenvolvimento extraordinário no estado actual
da representação política das classes trabalhadoras e das forças democráticas
em geral. E, da situação óptima que seria a das classes trabalhadoras e demais
forças democráticas inspirarem e fortalecerem o Exército, chega-se à
possibilidade de se vir a assistir a fenómeno contrário: o do enquadramento das
classes trabalhadoras pelo Exército. E a experiência dos aldeamentos estratégicos,
por si só, não é a melhor garantia de democracia...
Deve pois competir às forças sociais e políticas, que se proponham
descolonizar, socializar, desenvolver e democratizar o País, a tarefa de
reformular doutrina sobre as Forças Armadas, não esquecendo que nos tempos que
correm a sua existência é garantia da Nação.
CONCLUSÃO GERAL
O que aqui fica escrito tem por fim principal mostrar a necessidade de
um plano para a Nação. Qualquer força que queira efectivamente desempenhar um
papel de agente histórico neste país não pode eximir-se ao dever de
perspectivar Portugal. No estado em que este se encontra, uma política de
resolução parcelar dos problemas não corresponde ao momento da crise que atravessamos.
Tendo apontado esta necessidade de perspectivar a Nação e tendo avançado alguns
parâmetros que me parecem dever figurar num programa decidido de reestru-turação
do Pais, envio esta tese ao Congresso da Oposição Democrática esperando que ela
possa ser útil ao debate sobre Portugal no Mundo.
CONCLUSÕES
No preciso momento em que a reestruturação da Europa e o problema
colonial repõem a questão nacional, algumas conclusões são necessárias:
1— Urge definir um plano para a Nação.
2— Portugal encontra nas suas classes trabalhadoras o melhor veículo
para a sua continuação como Estado independente.
3— A actual problemática portuguesa aponta três ordens de soluções que
convém trilhar simultaneamente: trata-se de descolonizar, de socializar e de
desenvolver.
4— Tais metas devem ser alcançadas através de uma profunda democratização
da sociedade portuguesa. Várias vias ainda se nos oferecem no que diz respeito à
democratização do Pais.
5— O processo de descolonização deve fazer-se de maneira a garantir a Portugal
o respeito da sua soberania na Europa e tendo em vista uma verdadeira
independência dos territórios africanos.
6— O processo da descolonização portuguesa, inscrevendo-se num quadro
político mais vasto que é o da criação de uma zona Europa-África terá de ter
esta em conta.
7— Esta colaboração entre países europeus e países africanos só será
justa se se ultrapassar o actual sistema de relações. Deve pois passar-se de
formas coloniais ou neocoloniais para um sistema partidário de alianças.
8— Portugal deve não só dar o exemplo destas modificações nas relações
entre os países europeus e os países africanos como mostrar àqueles a
necessidade de se ultrapassar as formas neocoloniais de colaboração.
9— Assegurada a descolonização em tal quadro tratar-se-á de impor à
Europa e ao resto do Mundo o respeito pela nossa via de desenvolvimento
político e económico.
10— O avanço das estruturas socialistas em Portugal deve ser uma das
expressões dessa via nacional.
11— Numa mais profunda reestruturação do espaço europeu coexistirão certamente
Estados nacionais e poderes transnacionais. No caso português o plano nacional
será ainda o melhor para se conquistar e manter liberdades. Ele permitirá
também uma articulação mais harmoniosa e necessária entre Portugal e a Europa.
http://www.publico.pt/politica/noticia/jose-medeiros-ferreira-e-a-tese-que-previu-o-25-de-abril-1628741José Medeiros Ferreira (1942-2014)(Clicar para ler)
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