Reunimos aqui, num único post, todos os "Diários de Kiev, escritos entre 11 de Fevereiro e 2 de Março, e que foram editados neste blog nos últimos dias, trabalho jornalistico da autoria de Pedro Caldeira Rodrigues, jornalista da LUSA, entretanto regressado a Portugal:
É com muita honra e prazer que
podemos anunciar a publicação, a partir de hoje, no blog Pedras Rolantes, das
reportagens de Pedro Caldeira Rodigues, a partir de Kiev, sobre a situação
actual vivida na Ucrânia, escritas para a agência LUSA.
Pedro Caldeira Rodrigues é um
consagrado repórter, especializado em assuntos internacionais, actualmente jornalista da LUSA.
Nascisdo em 1958, formado em
História pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde se licenciou em 1981 e tirou
o mestrado em História e Cultura Europeia Contemporânea em 2008, foi um dos
jornalistas fundadores do jornal Público.
Teve o seu baptismo de fogo na
guerra da ex-jugoslávia, como reporter do jornal Público e desta experiência
resultou a publicação, em colaboração com o jornalista sérvio Steve Niksico de
"Vírus balcânico. O Caso da Jugoslávia", obra editada pela Assírio
& Alvim em 1996.
Publicou também o "Atlas da
Europa", em 2001, editado pelo Público,
e "O Sobressalto Grego", editado em 2015, sendo um dos mais
conceituados e mais bem informados jornalistas de politica internacional.
A História é outra das suas área
de interesse, tendo publicado em 2011 "Teatro de Revista e a Iª República
(...)" , sendo igualmente colaborador, com artigos de divulgação e
investigação histórica, na revista Visão História.
Amigo pessoal de longa data e
colega na faculdade de Letras do autor deste blog, é com grande orgulho que ele
nos autorizou a publicar neste blog as suas reportagens diárias, que ele está a
realizar a partir de Kiev, às quais daremos o Título de "DIÁRIOS DE KIEV
por Pedro Caldeira Rodrigues".
Estes "Diários" revelam
a sensibilidade, o conhecimento aprofundado da realidade ucraniana e uma
preocupação de contextualização histórica, de uma rara objectividade
jornalística, que marcam todo o trabalho desse jornalista.
Esperamos que os nossos leitores
sintam, como nós, o prazer de ler o seu bem informado trabalho jornalistico :
DIÁRIOS DE KIEV – (1)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
11 de Fevereiro de 2022
Rússia pretendia converter a Ucrânia “numa Bósnia”
Por Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa
12 fev 2022 (Lusa) - A Rússia pretendia converter a Ucrânia numa Bósnia
e manter uma influência decisiva sobre Kiev, mas a situação alterou-se e o
acordo Minsk II já não é aplicável, defendeu em entrevista à Lusa o
investigador Arkady Moshes.
"A Rússia pretendia converter a Ucrânia numa Bósnia. Criar um
Estado fraco e poroso, com uma parte com possibilidade de veto sobre opções de
política externa do conjunto do Estado", considerou Arkady Moshes, numa
referência ao Acordo de Dayton de 1995 sobre a Bósnia-Herzegovina que pôs termo
à guerra civil e criou duas entidades autónomas com um fraco Estado central.
"Isso foi entendido desde o início, e o que a Ucrânia tem feito
nos últimos oito anos foi tentar progredir nessa área apesar do conflito. O
cálculo seria que a Ucrânia poderia admitir fazer concessões para garantir o
controlo de todo o território, mas basicamente a Ucrânia estabilizou a linha da
frente e começou a fazer o que pretendia, designadamente prosseguir o acordo de
associação com a União Europeia e o acordo de comércio livre abrangente,
prosseguir a cooperação militar bilateral com a NATO, e o regime livre de
vistos. Apesar do conflito, voltou-se para o ocidente", explicitou o
diretor do programa para a Europa de leste e Rússia do Instituto Finlandês de
Assuntos Internacionais (FIIA), sediado em Helsínquia.
Segundo Arkady Moshes, não existe uma perspetiva de integração formal
da Ucrânia na UE e na NATO, nem se registaram conversações sobre o tema, mas
antes "um intenso processo de cooperação e integração, não no ocidente,
mas com o ocidente", com Moscovo a "perceber" que se construiu
um cenário que pretenderia evitar.
Pelo contrário, os líderes russos e os dirigentes das duas repúblicas
separatistas "pró-russas" do leste da Ucrânia continuam a insistir na
aplicação dos acordos de Minsk II, assinados em fevereiro de 2015 pelos
Presidente da Rússia, Ucrânia, França e a então chanceler da Alemanha, sob os
auspícios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), e
considerados favoráveis às pretensões dos dirigentes russófonos do leste
ucraniano.
"O acordo Minsk II não é aplicável, é uma folha e papel que está
morta. Não pode ser aplicado pela simples razão de que a sua lógica está
totalmente errada. Diz que devem ser realizadas eleições antes de a Ucrânia
restabelecer o seu controlo [nos territórios separatistas], e que devem ser
realizadas em conformidade com os padrões europeus. Mas quem pode imaginar a
realização de eleições segundo esses padrões se a liberdade de reunião, de
divulgar informação, de ser feita campanha em todo o território, não
existirem", interrogou-se o investigador, também membro do Programa de
Novas Abordagens sobre Pesquisa e Segurança na Eurásia (PONARS, Eurásia).
Na perspetiva de Moshes, o escrutínio apenas poderá ser concretizado
após o "controlo soberano" da Ucrânia sobre esses territórios.
"Caso contrário, os resultados serão obviamente inaceitáveis para
a Ucrânia, porque haverá pessoas que a Ucrânia pretenderá provavelmente
indiciar por crimes de guerra que se tornariam membros do parlamento, ou
membros da polícia nacional nessas áreas", sugeriu.
Ao abordar ainda os potenciais novos referendos sobre a
autodeterminação previstos em Minsk II, o académico também se interrogou sobre
em que territórios deveria decorrer a consulta, pelo facto de as fronteiras
terem ficado indefinidas na sequência do conflito indicado em 2014 e que já
provocou cerca de 14.000 mortos e pelo menos 1,5 milhões de deslocados.
Nos territórios secessionistas concentram-se cerca de quatro milhões de
pessoas, num país com cerca de 36,5 milhões de habitantes, e o conflito
implicou uma importante transferência de populações, que se mantiveram na
região do Donbass mas separadas pela designada "linha de contacto".
O académico e especialista nas relações União Europeia-Rússia e nas
políticas interna e externa dos países desta região e ex-repúblicas soviéticas,
refere-se às populações deslocadas, questiona-se se também seriam elegíveis num
referendo sobre a independência caso fossem autorizadas a votar, ou no destino
das significativas populações russófonas, de língua russa, talvez 30% da
população do país e sobretudo concentrada no centro-leste ucraniano e sul do
país, e que se queixam de várias discriminações do poder de Kiev.
"Pelo menos 700.000 pessoas, ou agora cerca de um milhão, que
vivem nesses territórios tornaram-se cidadãos russos devido à entrega massiva
de passaportes. Votaram nas eleições na Rússia e são cidadãos de outro Estado,
um estatuto que a Ucrânia não permite. São questões técnicas, e sem referência
às políticas. Do ponto de vista técnico é muito difícil responder, mas se
formos para o campo político, não sou um advogado mas sei que o direito à
autodeterminação, e o direito de um Estado controlar todo o seu território, sempre
estiveram em contradição".
O direito à autodeterminação não se aplica a estes territórios"
pelo facto de já existir uma "nação" russa, considera Moshes.
Para além das questões "técnicas", a realidade política
continua a impor-se e Arkady Moshes não tem dúvida em considerar que vai
permanecer "uma questão estratégica" para a Rússia. "Não se
trata necessariamente de um controlo territorial, mas uma espécie de
possibilidade de decidir sobre o destino da Ucrânia, e que Putin tenta obter
desde que assumiu o poder", indicou.
O que nunca implicará que a Rússia se "esqueça" da Ucrânia,
mesmo na perspetiva de um acordo de âmbito global.
"Seria positivo mas isso não vai acontecer, Moscovo vai prosseguir
a sua política, a Rússia é um grande país e possui outros instrumentos de
pressão. Os instrumentos económicos de pressão são enormes devido à dependência
energética da Ucrânia, e a sua ineficiência energética é ainda mais importante
que a dependência, a cibersegurança, também a possibilidade de manter a pressão
através da mobilização de forças militares para junto das fronteiras, incluindo
na Bielorrússia, mas sem escalada", prognosticou.
Numa referência à posição dos Estados Unidos nesta séria crise
internacional, considerou ser este "o momento da verdade nas relações dos
EUA com a Europa" e após a nova administração da Casa Branca se ter confrontado
com diversas realidades.
"Quando o Presidente Joe Biden subiu ao poder, penso que poderia
ser fácil reconstruir as pontes com a Europa, semidestruídas durante o mandato
de Trump. Pensou que poderia efetuar alguns gestos, como em relação aos planos
económicos da Alemanha relacionados com o gasoduto Nord Stream II, e outros
temas", referiu.
"Mas percebemos que não havia unidade na administração Biden face
à Rússia, e houve pessoas com perspetivas muito mais céticas em relação à
Rússia", apontou, apesar de considerar "positivo" que Washington
tenha passado a "prestar mais atenção" à Rússia, tendo neste aspeto
"agitado" a Europa.
"Mas esta situação ainda não terminou. Se a escalada se verificar,
o Nord Stream II [o novo gasoduto entre a Rússia e a Alemanha, já concluído,
mas ainda sem licença para funcionar] estará em risco, e terão de ser aplicadas
sanções norte-americanas a um gasoduto também alemão, agravando as relações
EUA-Europa. Aproximamo-nos de um difícil ponto de bifurcação. A cooperação
transatlântica pode melhorar, mas se ocorrer uma escalada ainda não sabemos
quais as contradições que podem emergir entre os EUA e a Europa",
concluiu.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (2) por Pedro Caldeira
Rodrigues (Agência LUSA)
12 de Fevereiro de 2022
“Efeito Crimeia” de 2014 não
será possível de repetir pela Rússia
Por Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa ***
12 fev 2022 (Lusa) - O Presidente da Rússia tem pouco a ganhar
internamente com a crise nas relações com a Ucrânia porque o "efeito
Crimeia" não pode ser repetido, mas manterá condições para permanecer no
poder, afirmou à Lusa o investigador Arkady Moshes.
"Vladimir Putin possui uma grande flexibilidade a nível interno.
As instituições estão sob controlo, a Rússia é um estado autoritário, e a sua
manutenção no poder não depende muito do desfecho da atual crise",
considerou Moshes, diretor do programa para a Europa de leste e Rússia do Instituto
Finlandês de Assuntos Internacionais (FIIA), sediado em Helsínquia.
Apesar de considerar que o líder do Kremlin não pode extrair
importantes proveitos políticos desta crise, mesmo que a sua estratégia seja
bem-sucedida, o atual cenário é muito diverso do registado há oito anos, na
sequência da "designada "revolução de Maidan" que levou ao poder
um Governo "pró-ocidental" e a consequente anexação da península da
Crimeia pela Rússia e o início do conflito no leste do país.
"O designado 'efeito Crimeia' foi um momento de euforia que não
pode ser repetido. Há oito anos, quando a Rússia anexou a Crimeia, foi uma
medida que agradou à população, a maioria dos russos considerou-a justa,
legítima, que a população da Crimeia queria juntar-se à Rússia. Foi popular e basicamente
não teve custos. Não houve guerra, não chegaram caixões com mortos à Rússia,
foi rápido", assinalou o académico, também membro do Programa de Novas
Abordagens sobre Pesquisa e Segurança na Eurásia (PONARS, Eurásia).
O impacto a nível interno de novos sucessos protagonizados pela Rússia
no seu envolvimento político-militar além-fronteiras também acabou por ser
mitigado, assinalou, apontando o exemplo da Síria.
"A atuação russa na Síria foi muito bem-sucedida. Em relação à
situação no terreno e face ao ocidente, a Rússia não permitiu que o ocidente
concretizasse a sua agenda na Síria, mas no interior do país teve um efeito
quase nulo na popularidade do Governo de Putin", indicou.
No entanto, Arkady Moshes adverte que a atual situação na Ucrânia pode
ser "mais complicada" para o Kremlin, pelo facto de uma eventual
escalada implicar um conflito em larga escala, com fortes consequências.
"Ninguém pode considerar que será uma guerra fácil. Será uma
guerra. E os custos serão significativos, haverá mortos, e não será
particularmente popular num país onde existem muitos 'patriotas do sofá', como
os designamos. Os que gostam de ver os sucessos na televisão, mas não
necessariamente enviar os seus filhos para combater".
O analista, especialista nas relações União Europeia-Rússia e nas
políticas interna e externa dos países desta região e ex-repúblicas soviéticas,
admite que o foco deve continuar a ser dirigido para as negociações em curso, a
vários níveis e com diversos protagonistas - em particular em torno das
"garantias de segurança" emitidas por Moscovo - e que poderão mesmo
implicar algumas concessões à Rússia.
"Também isso não alterará em muito a popularidade do Governo, mas
é qualquer coisa. Em comparação com o risco de uma escalada, é uma estratégia
de saída muito mais fácil no âmbito da atual crise. Espero que seja
conseguida".
No atual contexto, frisa, a opinião pública russa "não está
preparada para a guerra", mas no caso de um conflito admite que Putin
permanecerá no poder.
Mas a opção pela ocupação e anexação de territórios, envio de tropas
terrestres para os controlar, implicaria uma situação que se prolongaria por
largos anos, e um exercício particularmente arriscado.
"No passado, a Rússia errou várias vezes nos seus cálculos, nas
duas revoluções ucranianas e em 2014-2015, quando pensou que metade da Ucrânia
estava simplesmente à espera de ver a libertação por parte dos soldados russos
ou pró-russos. Na realidade isso não aconteceu e a maioria dos soldados na
linha da frente e do lado ucraniano eram falantes de russo (russófonos)",
assegurou.
"Os cálculos errados aconteceram e penso que neste momento uma
análise sóbria supõe que a situação pende mais para a busca de um compromisso
que para uma escalada. Caso se inicie será uma grande guerra, com baixas, e
nesse caso não é possível analisar que impacto teria".
Na sua perspetiva, a perspetiva de uma invasão militar da Ucrânia - que
tem frequentemente sido admitida no ocidente, em particular pelos Estados Unidos
- "não é inevitável".
Numa referência ao "plano original" da liderança russa,
Arkady Moshes, considera que se destinava essencialmente "a demonstrar a
prontidão para impor pressão militar, mas não necessariamente uma invasão e que
seria demasiado arriscado", apesar de considerar que ninguém pode excluir
essa hipótese.
"Mas tenho verificado nos últimos meses que o desejo da Rússia
consiste em prosseguir as negociações. Haverá encontros na base do formato da
Normandia a nível de conselheiros [componente política do processo de paz que
permanece bloqueado e com envolvimento da Rússia, Ucrânia, Alemanha e França],
trocas de cartas entre a Rússia e os países europeus e NATO, visitas a Moscovo,
algumas mais bem-sucedidas que outras, e que indicam a existência de uma
vontade séria para prosseguir no caminho da diplomacia. Não penso que a invasão
seja inevitável".
A recente visita a Moscovo do Presidente francês, que acabou por
desmentir que tenha utilizado o termo “finlandização” e que deveria ser
“aplicado” à Ucrânia, também motivou uma observação arguta do
investigador.
“Foi extremamente importante, os políticos na Europa, em particular na
Alemanha e França e que gostam de falar em ‘finlandização’ deveriam esquecer
este termo que utilizam “, frisou, por considerar a expressão “um trauma, uma
ofensa e um insulto” para os finlandeses.
“Não foi uma escolha livre da Finlândia, foi uma escolha imposta à
Finlândia como consequência da Segunda Guerra Mundial. Se a decisão fosse
deles, nunca teria havido ‘finlandização’, que não é mais que a perda da
soberania em política externa com o objetivo de proteger a situação ou uma
solução política interna”.
E exemplificou: “Seria o mesmo que alguém dizer agora aos franceses que
o período entre 1940 e 1944 é um período da história do qual se deveriam
orgulhar. Seriam insultados, mas por alguma razão pensam que podem utilizar
esse termo dirigido a outros países”.
Numa referência particular à Ucrânia, recordou que em 2014 e 2015, o
país era um “Estado neutral”, não alinhado militarmente, mas que se confrontou
com a perda de território e um conflito no leste.
Neste contexto, considera que as posteriores emendas à Constituição
ucraniana, com a consequente aproximação às estruturas euro-atlânticas, foi o
resultado de uma experiência “muito negativa” como não-alinhado.
“Tinha procurado ser membro da NATO antes, procura agora o mesmo, mas
em 2014 não procurava essa adesão. E iniciou-se a crise... Oferecer agora à
Ucrânia o mesmo do que quando perdeu os seus territórios será impraticável,
condenado ao fracasso, e é compreensível”, num mundo “totalmente diferente e
num sistema de segurança europeia totalmente diverso” do existente após a
Segunda Guerra Mundial.
Uma situação que comparou à existente no seu país, e na vizinha Suécia,
que após os tratados de Ialta e Potsdam viram negado o direito de optar a que
aliança pertencer.
“Aceitar ou não um país na NATO é uma questão diferente, porque o caso
tem de ser analisado. Mas negar a um país o direito de escolher a que aliança
pertencer e pedir essa adesão é totalmente obsoleto e inaceitável no século
XXI”, concluiu.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (3)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
18 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: Os longos protestos contra o colapso económico que juntam
inimigos políticos
“ Na manhã de quinta-feira, rodeados por numeroso dispositivo da
polícia de intervenção, algumas centenas de pessoas regressaram à Praça Maidan,
centro de Kiev, em protesto contra a situação económica e o aumento dos
impostos.
Num dia com um tímido sol a despontar, quatro graus positivos e vento
persistente que depois trouxe chuva, a pequena multidão, com bandeiras brancas
e a frase “Salvem a Ucrânia”, lema do movimento, foi forçada a dispersar por
dezenas de polícias de intervenção equipados a rigor. Momentos de tensão, num
país em tensão permanente desde o início da guerra no leste, na região do
Donbass.
A concentração, que interrompeu o trânsito na avenida Khreschatyk,
voltou a ser apoiada por forças irreconciliáveis entre si, mas unidas na
oposição ao Presidente Volodymyr Zelenski.
“Não foi uma manifestação política, foi de pequenos empresários que
protestam contra diversas medidas do Governo e exigem a redução da pressão dos
impostos e dos decretos administrativos dirigidos ao pequeno comércio”, disse à
Lusa Volodymyr Ariev, deputado do Solidariedade Europeia (YeS), o antigo bloco
de Petro Poroshenko que nas legislativas de outubro de 2014 garantiu 132 dos
423 lugares na Rada.
Este partido de centro-direita, nacionalista e pró-europeu, foi
derrotado em 2019 pela formação do atual Presidente, que também se impôs por
larga margem ao rival Poroshenko nas presidenciais que decorreram em
simultâneo.
“Protestam há mais de ano e meio, e por vezes fazem grandes
manifestações, como agora sucedeu”, acrescenta Ariev.
Mas este protesto também obteve o apoio da Plataforma da Oposição -
Pela Vida (OPZZh), um partido definido como pró-russo que contesta a
aproximação à União Europeia, dirigido pelo oligarca Viktor Medvedchuk e que se
afirma solidário com os pequenos empresários em protesto pelas recentes medidas
sobre transações bancárias aconselhadas por Bruxelas e que consideram fatais
para o seu negócio, onde imperava o ‘dinheiro vivo’.
Progressivamente, a frase que ecoou por toda a praça, com a ajuda de um
megafone, acabou por se dissipar, também abafada pelo ruído dos automóveis que
retomaram a circulação, e tudo voltou ao normal.
Mas a situação económica da Ucrânia, um país com quase 40 milhões de
habitantes, muito dependente de empréstimos e doações das grandes instituições
financeiras internacionais, é grave. O PIB ‘per capita’ coloca-o no 119º lugar
à escala global e o desemprego e a pobreza parecem desafiar todas as
estatísticas oficiais.
Anton Naychuk, 31 anos, doutorado em Ciências Políticas e um dos
diretores da Fundação Diplomacia Civil, um instituto próximo do atual Governo,
reconhece o momento crucial que o seu país atravessa. “Devido à permanente
pressão internacional, os investidores estrangeiros estão a tentar retirar o
seu dinheiro da Ucrânia, e isso está a provocar muitos problemas. O Presidente,
o Governo, a sociedade civil, entendem que o risco de uma agressão russa está
presente, mas tentamos manter a calma e explicar aos nossos parceiros
internacionais que este contexto pode ser ultrapassado”, afirma.
“Já perdemos cerca de seis mil milhões de dólares [5,3 mil milhões de
euros] em investimentos desde o início desta crise [em 2014 com a anexação da
Crimeia pela Rússia e o início da guerra no Donbass], e o desemprego é outro grande
problema. Muitos investidores não querem trabalhar com a Ucrânia, apesar de
tentarmos transmitir garantias”, prossegue o responsável da Fundação e
mandatado para delinear o processo político e a preparação de um roteiro para
investimentos estrangeiros na Ucrânia.
“É muito difícil garantir novas oportunidades, novos negócios, porque
os investidores não vêm para aqui, e há muitos que tentam mesmo fechar os seus
negócios”, acentua Naychuk.
Neste contexto, os contínuos alertas ocidentais sobre uma “invasão
iminente” estão a motivar um grande incómodo na liderança de Kiev, incluindo no
Presidente Volodymyr Zelensky.
A cumplicidade com o atual poder instalado no palácio Mariinsky leva
Anton Naychuk a interrogar-se se a concentração na praça Maidan foi um
“protesto” ou antes uma “iniciativa política que pretende extrair benefícios”,
e quando o Governo, assegura, mantém “contacto direto com os empresários”
ucranianos e tenta encontrar compromissos.
O combate à corrupção e ao poder da oligarquia financeira também
associada ao político e empresário milionário Poroshenko – acusado em dezembro
de 2021 pelas autoridades ucranianas de alta traição num caso relacionado com a
alegada compra de carvão em territórios das repúblicas separatistas pró-russas
de Donetsk e Lugansk e a aguardar o julgamento em liberdade – foi anunciada
como uma das prioridades dos novos dirigentes, mas os resultados escasseiam.
“A corrupção é um problema para todos os países, mas na Ucrânia talvez
tenha sido um pouco mais problemática porque não foram tomadas medidas
suficientes para resolver a situação. Houve uma reforma do sistema judicial que
não obteve bons resultados após um conflito entre diversas instituições do
Estado”, diz Naychuk.
A presença dos “grupos de influência”, dos oligarcas, permanece muito
visível, apesar da íntima colaboração entre o chefe de Estado e o parlamento,
dominado pelo partido presidencial, na elaboração de projetos-lei para
contrariar essa influência e impedir que muitos deputados permaneçam controlados
por grupos financeiros.
“A nossa prioridade é o reforço dos laços económicos com a União
Europeia, mas em simultâneo, em particular nas regiões do leste, muitos
negócios continuam a ser orientados pela Rússia, onde continuam a existir
fábricas, produção”, indica Naychuk.
“Apesar de dizermos que a Rússia é a agressora, tentamos construir uma
política de vizinhança, existem riscos militares dos dois lados, mas em
simultâneo é necessário construir a nossa política regional tendo em conta os
nossos interesses nacionais”, adianta.
A guerra no leste implicou que a Ucrânia perdesse importantes unidades
industriais, agora sob controlo das administrações pró-russas das
autoproclamadas “repúblicas populares” de Donetsk e Lugansk, e com centenas de
milhares de passaportes russos distribuídos pela sua população, perto dos
quatro milhões.
“Todos estes factores têm um reflexo negativo na nossa situação
económica, e explicam como a nossa economia não está tão bem como desejávamos.
O covid-19 também teve um impacto muito negativo, e o principal objetivo do
nosso Governo é encontrar uma solução para estes problemas”, concluiu”.
DIÁRIOS DE KIEV – (4)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
19 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: A cidade que não esqueceu os seus mortos
“Em Kiev, oito anos após a “Revolução de Maidan” do inverno de 2014,
presta-se tributo a quem tombou durante os violentos confrontos que ditaram o
fim de uma contestada opção política, iniciando uma prolongada guerra ainda sem
desfecho.
Junto a uma pequena capela de madeira fica o mausoléu em memória dos
“Cem Celestiais”, mártires da “Revolução de Maidan”. Um grupo de raparigas,
algumas com ramos de flores, perfila-se junto a uma grande lápide de aço e
granito com dezenas de fotos. A professora pede para tirar uma fotografia
frente ao pequeno templo à guarda da Igreja greco-católica ucraniana, uma
construção de madeira erguida em memória dos caídos.
Tinha já decorrido a cerimónia religiosa celebrada por dois padres, com
cânticos e ornamentos coloridos e reluzentes, frente a uma grande cruz de
madeira com Cristo crucificado, esculpido. Um ritual de uma Igreja católica,
fiel ao Vaticano, mas de rito bizantino, herança da conflituosa história que
assolou estas regiões do leste, com fronteiras disputadas entre impérios rivais
e distintas obediências ao sagrado.
No percurso em direção ao monumento, em fitas atadas a árvores ou
colocadas nos arbustos, dezenas de figuras de sinos, de anjos, todos brancos e
recortados a papel.
A capela de madeira, que designam de “Templo do Arcanjo Miguel e Novos
Mártires Ucranianos”, foi erguida em três dias, tal como a cruz. Cerca de um
mês antes, em 20 de fevereiro, 47 defensores da brigada “Porta de Lviv”, da
“42ª unidade da autodefesa de Maidan” foram mortos neste local, em confrontos
com as forças policiais.
“Foram pessoas que morreram, dispararam sobre eles… Foi a professora
que nos trouxe aqui, já viemos antes. Foram mortos por coisas do Governo”, diz
Vi, 12 anos, integrada na visita escolar.
Por toda a cidade, grupos de jovens, de mulheres, de idosos,
recolhem-se frente aos altares a céu aberto, tributo aos “heróis” tombados na
também designada “Revolução da Dignidade”.
Cravos vermelhos, coroas de flores, capacetes de segurança geralmente
usados nas construções que pertenciam a insurgentes abatidos na “Revolução de
Maidan e dos ‘Snipers’” – como também se designa a rebelião contra o Presidente
“pró-russo” Viktor Yanukovych para recordar os atiradores furtivos que
dispararam em direção aos protestos – estão alinhados com devoção.
Perto da praça Maidan, outro altar improvisado com uma cruz, uma
bandeira nacional azul e amarela, restos de uma barricada e um pneu acompanham
as fotos dos 11 caídos que, incentivados pelas oposições, se juntaram aos
milhares que desceram às ruas em protesto pela recusa de Yanukovych em assinar
um acordo de associação comercial com a União Europeia. O pretexto para a
revolução.
Nas proximidades, dois idosos vendem pequenas fitas de pano coloridas
que depois são atadas num corrimão, às centenas, ou presas às fotos. Nessa rua
que sobe a partir da grande praça, pequenos tijolos de cimento colocados num
muro enquadram duas centenas de fotos dos mortos de Maidan, a maioria homens,
algumas mulheres. Muitos com cravos vermelhos no pequeno nicho, velas, mesmo
objetos pessoais que lhes eram queridos, uma longa tradição religiosa ortodoxa.
Perto, numa ponte aérea pedonal, está colocada uma grande faixa que
exige a libertação de Nariman Jelal, tártaro da Crimeia, ativista, detido após
a anexação da península pela Rússia.
Em diversos pontos da cidade também foram instalados painéis de metal
com fotos dos “heróis ucranianos” mortos nos combates que eclodiram após a
rebelião separatista das populações russófonas do leste na primavera de 2014,
também acompanhados pelos seus cravos e velas. Deixaram-se mensagens, poemas em
lápides ou em papel, bandeiras nacionais.
Há oito anos que a Ucrânia parece viver em estado de luto permanente,
desanuviado na primavera de 2019 com a vitória de um “marginal da política”, o
ex-comediante e atual Presidente Volodymyr Zelenski, que prometeu melhor nível
de vida, combate à oligarquia corrupta, solução negociada do conflito no leste.
Uma esperança que se desvaneceu com as resistências internas, e ultimamente com
o agravamento das relações com a Rússia e as alegações de iminentes invasões
militares emitidas por aliados ocidentais.
Tudo parece ter regressado ao passado mais cinzento. E uma das formas
de colocar em segundo plano os desafios do dia a dia, no país rotulado como “o
mais pobre da Europa”, consiste na contínua mobilização em torno de
reemergentes referências nacionais.
Assim sucedeu na passada quarta-feira, um dia estipulado pelo aliado
norte-americano para a anunciada invasão.
O Presidente Zelenski dirigiu-se na noite anterior ao país pela
televisão e decidiu declará-lo “Dia da Unidade”. Bandeiras azuis e amarelas
foram hasteadas nos edifícios, colocadas nos postes de iluminação nas
principais avenidas, e às 10:00 em ponto entoou-se o hino nacional. Kiev ficou
engalanada.
“O risco de uma guerra total não é tão direto. Mas não excluo a
possibilidade de um conflito local na linha de contacto no Donbass. Os dois
lados podem iniciar um conflito e que poderá alastrar”, admite Anton Naychuk,
31 anos, doutorado em Ciências Políticas e um dos responsáveis da Fundação
Diplomacia Civil, uma organização que se afirma vocacionada para a adoção de
decisões acertadas em política externa e muito próxima do atual Presidente.
“Tentamos equacionar todas as variantes possíveis, a forma como poderá
ser abordada a situação. Mas espero que não se assista ao confronto direto
entre dois grandes exércitos, isso seria uma grande tragédia para a Ucrânia e
para toda a Europa, incluindo a Federação russa”, assinala após pedir desculpa
pelo atraso no encontro, justificado pelo trânsito intenso numa tarde cinzenta
e chuvosa em Kiev.
“Com as conversações diplomáticas sobre garantias de segurança,
atendendo à situação do [gasoduto russo-alemão] Nord Stream II e todos os
restantes casos, espero que Putin não decida atacar a Ucrânia”.
Na Ucrânia, institutos oficiais, organizações da sociedade civil,
investigadores independentes, prosseguem na análise de um processo pelo qual
uma sociedade relativamente pacífica degenerou para a rebelião civil, o
conflito e a guerra. Um ponto de viragem que implica profunda reflexão,
incluindo as consequências futuras de uma derrota ou vitória nesta guerra entre
“irmãos”, mesmo que remetida ao campo diplomático.
E existem setores da sociedade ucraniana mais renitentes perante um
eventual acordo de paz que apenas signifique o regresso a uma “guerra
congelada”, sem qualquer perspetiva de recuperação de territórios.
“A possibilidade de uma invasão permanece muito elevada. Não ocorreu
uma importante retirada de tropas e prosseguem os preparativos para uma
invasão, com todos os cenários ainda possíveis”, diz à Lusa Volodymyr Ariev, deputado
do Solidariedade Europeia (YeS), um partido conservador, nacionalista, e
principal força da oposição.
Apesar de o seu partido, liderado pelo ex-presidente Petro Poroshenko
continuar a promover em simultâneo uma feroz oposição a Zelensky e ao seu partido
Servo do Povo (SN) com maioria na Verkhovna Rada, o parlamento unicameral
ucraniano, a “defesa do território” gera consenso nacional.
“Os perigos vão aumentar, pode começar no leste e depois alastrar a
outras regiões sob controlo do Governo ucraniano. Se a Rússia reconhecer a
independências das repúblicas populares secessionistas isso pode significar uma
escalada imediata porque essas designadas repúblicas gostariam de controlar
mais territórios dos oblast [províncias]”, prognostica.
Após a “revolução de Maidan”, que Moscovo considera um “golpe de
Estado” dirigido a partir do exterior, a Rússia respondeu com a anexação da
península da Crimeia e de seguida forneceu apoio técnico e logístico aos
separatistas armados pró-russos da região do Donbass (leste), que declararam
“duas repúblicas populares” em Donetsk e Lugansk, ainda não reconhecidas por
Moscovo.
Na quarta-feira, a Duma russa (parlamento) aprovou uma resolução nesse
sentido dirigia a Putin, que cautelosamente ainda não acatou a ordem, porque a
medida significaria o fim das negociações assentes no acordo de Minsk II de
2015, favoráveis às pretensões separatistas de ampla autonomia.
Numa aparência de um dia a dia normal, os tambores da guerra continuam
a assolar os ucranianos. Temem que o seu país seja abandonado, remetido a um
limbo, à mercê dos interesses das grandes potências, porque sabem ter sido
nesta estratégica região entre as “duas Europas” que os poderosos elegeram um
novo palco para esgrimir os seus argumentos”.
DIÁRIOS DE KIEV – (5)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
19 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: Uma guerra no horizonte, mas com negócios à parte
“ Armas e munições dos Estados Unidos, Polónia ou Lituânia, drones da
Turquia e capacetes da Alemanha, material militar que nas últimas semanas tem
reforçado o exército ucraniano e que denuncia divergentes abordagens
geopolíticas face ao conflito com a Rússia.
Neste rodopio de armamento envolvendo avultadas verbas - e que alguns
consideram um incentivo para o exército ucraniano efetuar uma operação-surpresa
nas regiões controladas pelas forças separatistas pró-russas no leste, região
do Donbas - tem-se destacado a Turquia através de um delicado jogo de
equilíbrio com os vizinhos Rússia e Ucrânia com qual este membro da NATO tem
pretendido afirmar-se como potencial e decisivo mediador do conflito.
No início de fevereiro, a convite do seu homólogo Volodymyr Zelensky, o
Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou Kiev e assinou diversos acordos
bilaterais que preveem um contínuo reforço das relações entre os dois países,
que também ensaiam em paralelo uma aproximação a Israel.
Após a assinatura de um acordo de cooperação nas áreas da Alta
tecnologia, Aviação e Espaço, Haluk Bayraktar, diretor executivo da Baykar
Malina, que produz os drones militares Bayraktar TB2 utilizados pelo exército
ucraniano, confirmou a abertura de uma fábrica na Ucrânia para a produção
destes aparelhos.
Na ocasião, durante uma conferência de imprensa conjunta e após
agradecer a Erdogan – que emitiu um discurso cauteloso para não irritar o
Presidente russo Vladimir Putin, esperado proximamente em Ancara –, Zelensky
disse que o acordo vai expandir a produção na Ucrânia dos veículos aéreos não
tripulados (UAV) da Baykar Makina, uma empresa familiar na qual Selçuk, irmão
de Haluk e genro de Erdogan, é sócio.
"Também cria mais empregos e reforça as capacidades militares da
Ucrânia", acrescentou Zelensky.
A apresentação do catálogo desta empresa constituiu uma das prioridades
de Erdogan nas suas vistas oficiais, e o produto está em alta. Os Bayraktar TB2
foram decisivos na vitória militar do Azerbaijão sobre a Arménia em torno do
enclave do Nagorno-Karabakh, no outono de 2000, e já foram utilizados pelo
exército ucraniano contra as forças russófonas no Donbas, uma ação que implicou
fortes protestos de Moscovo.
"Apesar do reforço do nosso exército, não penso que uma ofensiva
militar ucraniana para recuperar os territórios do Donbas seja uma opção. O
Governo ucraniano, os responsáveis militares e civis têm sublinhado que a Ucrânia
não prevê qualquer operação militar para libertar os territórios
ocupados", indicou à agência Lusa Milan Lelich, o apodo de Oleksandr
Khymych, analista político para a agência noticiosa RBC-Ukraine.
A sua abordagem contraria as informações sobre uma súbita escalada da
tensão junto da "linha de contacto" delineada nos dois acordos de
Minsk (junho de 2014 e fevereiro de 2015), com os dois exércitos a acusarem-se
mutuamente de contínuas violações do cessar-fogo – uma constante nos últimos
oito anos agora confirmada pelos observadores da Organização para a Segurança e
Cooperação na Europa (OSCE) –, ou os anúncios da retirada de populações de
territórios das "repúblicas populares" secessionistas para zonas mais
seguras e a ordem de mobilização geral.
"Todo o armamento que temos recebido dos nossos aliados e
parceiros ocidentais, que muito agradecemos, é apenas para propósitos
defensivos e destina-se a conter uma eventual invasão em larga escala da
Ucrânia pela Rússia. É tudo. Estamos totalmente empenhados numa solução
diplomática. Não haverá uma operação militar contra as designadas repúblicas
terroristas, as ‘repúblicas populares de Donetsk e Lugansk’. Tenho 100% de
certeza", acrescenta Milan Lelich.
Um recente estudo promovido pelo World Value Survey indicou que as
Forças Armadas são a instituição que motiva mais confiança entre a população
ucraniana (74%), seguida pelas instituições religiosas (72%).
As únicas outras instituições com balanço positivo na confiança social
são o "sistema educativo" e as organizações da sociedade civil (ONG).
Neste estudo, os voluntários que se incorporaram no exército são
particularmente elogiados, em particular a partir de 2014. As Forças Armadas
passaram a ser consideradas "o exército do povo" e não uma máquina
hierárquica de generais e oficiais.
Para além dos efetivos nos três ramos militares, a Ucrânia possui uma
Guarda Nacional (NGU), força paramilitar dependente do ministério do Interior,
e os Batalhões de Defesa territoriais (VTO) na sequência de uma lei específica
que permite a mobilização de milhares de cidadãos para treinos militares que
decorrem em geral aos fins de semana.
Na sequência de uma decisão governamental, todas as unidades de
voluntários foram incorporadas nas Forças Armadas ucranianas, incluindo a
"Unidade de operações especiais Azov" (A3OB), uma força nacionalista
de extrema-direita e ideologia neonazi, acusada pela OSCE de crimes de guerra
no auge do conflito, incluindo raptos, tortura e execuções sumárias. Uma
prática também apontada a "unidades especiais" do contingente
separatista.
O atual nível de preparação do exército ucraniano, munido de
sofisticado material de guerra e mais de 100.000 efetivos – a Alemanha, devido
à sua "posição estratégica" apenas forneceu armamento não letal –
tornou-o num dos mais eficazes da Europa para situações de combate, quando este
confito provocou nos últimos oito anos cerca de 14.000 mortos, dezenas de
milhares de feridos e perto de 1,5 milhões de deslocados, dos dois lados.
"De momento estamos no centro do mundo, a Ucrânia tornou-se um
elemento de confrontação, incluindo no decurso dos contactos diplomáticos sobre
garantias de segurança na Europa", assinala Anton Naychuk, doutorado em
Ciências Políticas, um dos diretores da Fundação Diplomacia Civil e considerado
próximo do Presidente Zelensky.
"A Ucrânia também se encontra no meio da situação porque a
Federação russa quer evitar a adesão da Ucrânia à NATO… E com os EUA e a NATO a
afirmarem que a Ucrânia é independente e que deve ser mantida a política de
portas abertas".
Com contactos privilegiados no círculo do "partido do
Presidente", Anton Naychuk considera que o risco de uma guerra total
"não é tão direto" apesar de não excluir a possibilidade de um
conflito centrado inicialmente na "linha de contacto", a linha da frente
no Donbass. "Os dois lados podem iniciar um conflito e que poderá
alastrar", prognosticou.
"Espero que a guerra não se agrave, mas se compararmos hoje o
exército ucraniano com a primeira fase da agressão russa, desenvolvemos as suas
capacidades, garantimos uma boa colaboração com diversos parceiros, por exemplo
a Turquia, conseguimos colocar grande parte do nosso orçamento na área da
Defesa, garantimos o nosso armamento, acumulámos muita experiência militar após
2014 e que o tornou num dos mais experientes da Europa, disso não tenho dúvidas".
Na perspetiva de diversos analistas locais, este conflito não pode ser
dissociado de uma questão decisiva e da qual os dois países são muito
interdependentes: a extração e distribuição do gás.
À margem da "ocupação russa", e antes dos mais recentes e
constantes alertas sobre uma invasão militar, o gigante russo Gazrpom e a
Naftogaz Ukrainy firmaram em 2020 um contrato sobre o trânsito de gás russo
através da Ucrânia por um período de quatro anos, e que permanece em vigor. As
relações comerciais bilaterais também aumentaram, com muitos negócios
orientados a partir do lado russo.
"O nosso Governo também quer prosseguir estes contratos porque não
se trata apenas de um negócio, mas também de garantias de segurança devido à
passagem desse gás pelo nosso território. Nessa situação a Rússia não iria
intervir no nosso território. É a posição política do nosso Governo",
adianta Anton Naychuk.
A insistência dos Estados Unidos na iminência de uma invasão da Rússia
ao país vizinho também tem sido motivo de intensa polémica, com muitos a
associarem a firmeza de Washington à aproximação das decisivas eleições
intercalares de novembro, um teste crucial para Joe Biden.
"Para o Presidente dos EUA, sobretudo após o que sucedeu no
Afeganistão, é importante que mantenha autoridade, garanta uma vitória
diplomática sobre Putin e surja como um Presidente que conseguiu travar a
guerra. E com esta campanha de informação pretendem obter uma grande
resposta", concluiu o responsável da Fundação Diplomacia Civil”.
DIÁRIOS DE KIEV – (6)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
20 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: Os tártaros da Crimeia, o povo ‘boomerang’
“Num mundo existe um pequeno povo que se considera
"boomerang" porque, à semelhança desse objeto de arremesso, insiste
em regressar às suas origens apesar das muitas tentativas para o dispersar e
desenraizar, os tártaros da Crimeia.
No restaurante Mustafir (Convidado), não longe do centro de Kiev e
transferido do tradicional reduto tártaro de Bakhchysarai para a capital
ucraniana após a anexação da península pela Rússia, em fevereiro de 2014, Alim
Aliev personifica esse peculiar instinto de resistência.
"Somos como um ‘boomerang’ porque o destino remeteu-nos para outro
lugar, mas regressamos sempre. Os meus avós nasceram na Crimeia, os meus pais
na Ásia Central, também nasci na Ásia Central, o meu irmão mais novo já nasceu
na Crimeia e agora vivo em Kiev. Uma movimentação impressionante", contou
à Lusa.
Esta ativista de 33 anos, cofundador da organização Crimeia SOS e
vice-diretor do Instituto ucraniano, vocacionado para promover a visibilidade
da Ucrânia no exterior, a interação profissional e a difusão da cultura do seu
povo, nasceu tal como os seus pais no Uzbequistão, ex-província soviética da
Ásia central, após toda a população tártara ter sido deportada em 1944 por
ordem de Estaline sob a acusação de colaboração com o ocupante nazi durante a
Segunda Guerra Mundial.
O "Surgun", como designam na sua língua a grande deportação
dos 200.000 tártaros da Crimeia, também disseminados à força pelo Quirguistão,
Cazaquistão, Sibéria ou Urais, prolongou-se durante décadas e até 1989, quando
o então Presidente soviético Miklahil Gorbatchov, pouco antes da desintegração
da União Soviética, permitiu o regresso deste povo às suas terras ancestrais.
O Mustafir, que preserva a traça original, é o mais recente testemunho
desta odisseia. Nas paredes e almofadas com cores garridas e desenhos
geométricos, candeeiros ornamentados, o Yantir, o prato nacional tártaro à base
de carne de borrego envolvido por uma massa, e a tradicional bebida Ayran, são
servidos com diligência por jovens homens e mulheres com as suas roupas
tradicionais. As salas estão cheias, escuta-se uma suave música ambiente vinda
dos confins da memória deste povo autóctone da península da Crimeia e de
religião muçulmana.
Em 1989, tinha apenas um ano, a família mudou-se para a Crimeia de onde
eram naturais os avós, numa primeira vaga de regresso dos tártaros às suas
terras de origem. Aí viveu até 2010, estudou, colaborou num jornal local tártaro
e mudou-se para Lviv (oeste da Ucrânia), onde foi consultor de comunicação e
‘media’.
Alim é um dos mais aguerridos opositores à anexação da Crimeia pela
Rússia, a "nova colonização" como a designa, e a "terceira
tentativa" de reforçar na península o predomínio de população russa.
"Monitorizamos a situação dos direitos humanos na Crimeia e
detetámos mais de 3.000 casos de abusos dos direitos humanos após a ocupação de
2014. A maioria destes abusos são contra os tártaros da Crimeia. Mas é apenas o
topo do iceberg. No fundo, existe esta colonização com várias tendências, em
particular a militarização da península", assinala.
Os tártaros, que se exprimem numa língua com raízes turcófonas, são
hoje cerca de 300.000, 15% da população total de uma península com 2,5 milhões
de habitantes. Dos restantes, 21% dizem-se ucranianos e mais de 60% russos.
"Após a anexação, 30.000 tártaros saíram da Crimeia e
instalaram-se na Ucrânia e agora apenas 3% da população da Crimeia pode
aprender a nossa língua, que segundo a lista da Unesco está em vias de
extinção. Nas escolas existem cada vez menos aulas de língua tártara e nos
tempos da URSS apenas a aprendíamos no meio familiar".
Em simultâneo, registou-se uma vaga proveniente da Rússia. "Pelo
menos 500.000 pessoas, entre eles militares, membros do FSB [os serviços de
informações russos], funcionários administrativos, empresários, pensionistas.
Há cada vez mais russos instalados na Crimeia".
Povo de agricultores e comerciantes, muitos tártaros optaram nos tempos
soviéticos pela carreira médica ou de engenharia, por serem compulsivamente afastados
da área das humanidades.
"Era um povo que se opunha ao regime e, por isso, não convinha que
tivessem educação na área da política ou do jornalismo", afirmou Alim.
Até 1954, a Crimeia estava integrada na República socialista federativa
soviética da Rússia, mas em fevereiro desse ano o ‘presidium’ do Soviete
supremo da URSS, emitiu um decreto sobre a transferência da região da Crimeia
para a República socialista soviética da Ucrânia. Na ocasião, era
secretário-geral do PCUS o ucraniano Nikita Khrushchev e a medida, que não foi
submetida a qualquer referendo ou consulta à população local, motivou muitas
dúvidas sobre a sua legitimidade, sendo inclusive considerada um ato contrário
à lei soviética.
E foi esse um dos pretextos que justificou a anexação da Crimeia pela
Rússia de Putin em fevereiro de 2014 – na sequência da "revolta de
Maidan" que impôs um Governo "pró-ocidental" em Kiev –, seguida
de um referendo em março que confirmou a integração do território na atual
Federação russa.
"Agora, a maioria das pessoas na Crimeia tem hoje dois
passaportes, ucraniano e russo. Porque quem não possuir um passaporte russo tem
muitas dificuldades em viver na Crimeia. Estão proibidos de comprar terrenos,
construir casas, ter trabalho", indica o ativista.
O responsável do Instituto ucraniano, que mantém contactos regulares
com as autoridades ucranianas da península agora "no exílio", está
proibido de entrar na Crimeia, onde vivem os seus pais e irmão, que o visitam
com regularidade.
"Atualmente estão detidos 130 tártaros na Crimeia e desde 2014
registámos 15 casos de rapto e sete casos de morte por motivos políticos. Além
de 300 casos de buscas em casas promovidas pelo FSB", revela.
"Mas pretendemos garantir a nossa autonomia numa Ucrânia
democrática e independente. Para nós é importante preservarmo-nos como nação e
assumir mais responsabilidades na Crimeia. Seria um bom modelo, também para a
Ucrânia", sustentou.
O militante mantém contactos com muitos dos tártaros, muitos deles
jovens, que abandonaram a península há oito anos, num processo que designa de
"limpeza de cérebros" e que abrangeu desde jornalistas a figuras
políticas, artistas, estudantes, ativistas de ONG.
"Mas com os meus colegas e amigos estamos a lutar pela Crimeia,
porque é a nossa terra-mãe. Quero regressar à minha terra-mãe livre",
sublinha, com firme convicção, e num processo que define de resistência
pacífica.
"Reivindicamos a desmilitarização e o fim da ocupação da Crimeia.
Também é crucial a preservação da nossa identidade, língua, cultura, tradição,
religião… E por cada ano que passa torna-se num desafio mais difícil. As minhas
atividades focam-se na identidade dos tártaros da Crimeia", afirmou.
Além da atividade no Instituto ucraniano e no SOS Crimeia, uma
organização não governamental (ONG), Alim Aliev também está envolvido no
projeto de 2021 Plataforma Crimeia, uma iniciativa do atual Presidente
ucraniano Volodymyr Zelensky e um "mecanismo internacional" contra a
ocupação da Crimeia com o objetivo de ser difundido por diversos países.
Organizam encontros políticos, culturais, cursos ‘online’ sobre a
história da Crimeia, diversos projetos, a monitorização dos direitos humanos, a
herança cultural da Crimeia.
A mais recente iniciativa é um projeto teatral designado 5 AM, com um
livro editado em 2021 e focalizado em 11 tártaros da Crimeia que estão detidos,
alguns condenados a pesadas penas e onde se incluem políticos e jornalistas.
"Designa-se 5 AM, porque as principais operações de buscas do FSB
na Crimeia iniciam-se às cinco da manhã", explica. Na capa dois ponteiros
negros sob fundo branco apontam para as cinco da manhã.
Um projeto que já tem confirmados espetáculos além-fronteiras, também
em nome da reintegração desta região banhada pelo mar Negro na Ucrânia. Apesar
de muitos dos seus cidadãos já terem migrado, e os novos residentes serem
cidadãos russos”.
DIÁRIOS DE KIEV – (7)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
20 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: Campanha “Punir Putin” lançada no dia das celebrações de
Maidan
“ No praça Maidan, centro de Kiev, algumas dezenas de pessoas
juntaram-se ao início da tarde de hoje para assistir ao lançamento da “Campanha
Punir Putin”, que envolve diversos ativistas e pretende levar a julgamento o
Presidente da Rússia.
Num palco improvisado, a referência em inglês "#Putin criminoso de
guerra", ao lado a frase “Sim à Ucrânia”, num ecrã eletrónico, em rodapé,
“Ucranianos resistirão”.
No painel colado ao palco surgem quatro fotos, lado a lado: Saddam
Hussein, Slobodan Milosevic, Muammar Kadhafi, os três riscados com uma cruz
vermelha, e Putin, com um ponto de interrogação no meio da face. Os promotores
desta iniciativa parecem desejar ao líder russo o destino fatal dos defuntos
dirigentes do Iraque, Sérvia e Líbia.
“A ideia é criar um comité internacional que
será dirigido por diversos membros da sociedade civil, incluindo um antigo juiz
no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia [TPIJ]”, o extinto
organismo ‘ad hoc’ da ONU responsável pelo julgamento de crimes de guerra,
indica um dos promotores da iniciativa.
“Esta campanha terá sucesso, muitos países,
muitas pessoas estiveram submetidas à agressão russa, a agressão de Putin, e
quando unirem os seus esforços esta campanha vai reforçar-se”, prossegue o
jovem, pleno de convicção.
No cimo da escadaria, onde se perfilavam vários homens fardados que
filtravam as entradas para mais perto do palco, exibiam-se alguns dos despojos
da “revolução de Maidan”, entre finais de 2013 e inícios de 2014. Escudos,
capacetes, máscaras de gás, barras de ferro. Os jornalistas acotovelam-se, e o
seu número quase rivaliza com os participantes.
“Pelo microfone passou um representante da
República Chechénia da Ichkeria [no exílio] que luta pela independência desta
república russa do Cáucaso do Norte, um representante dos tártaros da Crimeia
[a península anexada pela Rússia em fevereiro de 2014], um dissidente da
ex-URSS membro da sociedade civil e
representante da comunidade judaica na Ucrânia”, precisa.
Na escadaria, um pequeno grupo de georgianos mostra a frase que
escreveu num longo rolo de papel, “A Geórgia e a Ucrânia serão membros da NATO.
Declaração da Cimeira de Bucareste 2008”. Ao lado, uma rapariga com um cartaz
azul, “Os georgianos apoiam a Ucrânia”. Um país do Cáucaso onde, à semelhança
da região do Donbas, leste da Ucrânia, também foram declaradas duas repúblicas
separatistas, Ossétia do Sul e Abkházia, reconhecidas por Moscovo.
Um casal abandona a praça com a bandeira polaca, vermelha e branca,
estendida pelas costas. Não longe, muitos cidadãos prestam homenagem aos caídos
de Maidan, junto às suas fotos espalhadas pela cidade, em muros, em painéis,
atadas a troncos de árvore.
A iniciativa na praça Maidan terminou com um pequeno comício, no dia do
“início da agressão russa”, esclarece ainda o jovem, que também prestou tributo
aos “Cem Celestiais”, os heróis da revolta desse inverno que mudou os destinos
do país.
Desde o início da manhã que muitos habitantes da capital da Ucrânia
celebraram o oitavo aniversário da “Revolução da Dignidade”, como também é
conhecida a revolta pró-europeia de Maidan que depôs o Presidente “pró-russo”
Viktor Yanukovich, mas em ambiente mais tranquilo.
Uma discreta cerimónia, com fanfarra, juntou o atual Presidente
Volodymyr Zelensky e o seu arquirrival e ex-chefe de Estado, Petro Poroshenho,
que por um momento esqueceram as dissensões políticas e participaram numa missa
de domingo a céu aberto junto ao “Templo do Arcanjo
Miguel e Novos Mártires Ucranianos”.
Mas Alisa, uma fiel partidária de Maidan, revela um perspetiva muito
particular do atual momento.
“Penso que os países europeus esqueceram a
verdadeira razão por que motivo aconteceu Maidan. Em França, por exemplo,
podemos ver candidatos às presidenciais que tentam demonstrar as suas posições
pró-russas apenas por considerarem que a Federação russa é mais forte.
Consideram que se houver guerra com a Federação da Rússia, será ela a vencer”.
Também receia que Maidan comece a ser esquecido por muitos dos aliados
que hoje juram fidelidade a Kiev no conflito com o grande vizinho.
“Os países ocidentais deveriam recordar porque
aconteceu Maidan. Após Maidan, muitas pessoas podiam ter deixado o país mas
ficaram, foram para a guerra, proteger o território, desenvolver o seu país, e
não se tornaram refugiados”, um fenómeno que considera decisivo nas relações
com diversos países europeus.
“Entendo as preocupações dos países ocidentais,
julgo que têm medo de um novo grande fluxo de refugiados se houver guerra,
talvez esteja errada… É importante lembrar-lhes que Maidan aconteceu porque não
queríamos refugiados, antes viver no nosso país e desenvolvê-lo”.
Um dia no qual muitas famílias aproveitaram para passar nos amplos
parques da cidade, almoçar em restaurantes, enquanto grupos de jovens se concentravam
à saída dos centros comerciais ou de cafés para fumar, conversar, beber
cervejas por garrafas de meio litro. Parecem muito longe dos sobressaltos
provocados pelos tambores da guerra, que insistem em continuar a ecoar. Foi à
sua vida, aos seus pequenos prazeres, que dedicaram este domingo”.
DIÁRIOS DE KIEV – (8)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
21 de Fevereiro de 2022
ENTREVISTA (em 18 de Feverreiro): Putin pretende regresso a
pensamento predominante na época do czarismo
“O pensamento de Putin sobre as relações entre a Rússia e a Ucrânia é
contraditório com a ideologia bolchevique e pretende um regresso ao pensamento
que predominava entre a elite do império czarista no século XIX, indicou à Lusa
um académico e ativista ucraniano.
“Putin considera que não existe uma identidade específica ucraniana,
quer um regresso à história do século XIX quando os russos diziam que existia
uma nação russa composta por grandes russos, os moscovitas, bielorrussos, e
pequenos russos, que para eles eram os ucranianos”, disse è Lusa Volodymyr
Yermolenko, filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla.
“Devemos entender que Putin é muito mais arcaico que a própria
ideologia soviética. Tentou ir além da ideologia soviética”, assinalou, numa
referência a um longo texto assinado pelo Presidente russo em 16 julho de 2021,
intitulado “Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos”, que suscitou
ampla discussão nos meios académicos e políticos dos dois países.
Um documento que contesta “as ideias de um povo ucraniano separado do
povo russo” e que percorre “uma longa história comum” de russos, ucranianos e
bielorrussos, “herdeiros da antiga Rus', que foi o maior país da Europa”, um
estado eslavo medieval, inicialmente centrado em Kiev, que remonta ao século
IX.
Na sua reflexão, o líder do Kremlin também considera que a “verdadeira
soberania da Ucrânia” apenas será possível “em parceria com a Rússia”, recorda
as comuns ligações “espirituais, humanas, civilizacionais estabelecidas desde
há séculos” e sublinha que “formamos um único povo”.
Putin acusa ainda os “atores ocidentais do projeto ‘antirrusso’” de
terem elaborado um sistema político ucraniano “com uma constante orientação em
direção à separação com a Rússia, à inimizade para com ela” – independentemente
de quem ocupar o poder –, assegura que o seu país nunca será “anti-ucraniano” e
frisa que “os dirigentes da Ucrânia moderna e os seus mecenas exteriores”
apenas possuem um objetivo, “conduzir ao enfraquecimento da Rússia, que convém
aos nossos adversários”.
Na perspetiva do académico, o chefe de Estado russo pretende “ir mais
além da União Soviética”, onde a ideologia oficial considerava que russos
ucranianos e bielorrussos constituíam “três nações diferentes”, mas com origens
comuns.
“A abordagem do estalinismo era a de que provavelmente “se uniriam num
único povo”, mas a construção original foi delineada por Lenine, e em torno de um
projeto federal, explicitou.
“Uma federação de Estados soberanos, com as suas fronteiras, hinos,
escudos de armas. Lenine fez isso porque havia uma história de independência da
Ucrânia, de tentativa de independência da Geórgia, etc., e desde o século XIX
diversos intelectuais ucranianos sugeriam a ideia de que o Império russo se
deveria tornar num Estado federado”, prosseguiu Yermolenko, também diretor
analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org.
“Os ucranianos sugeriam esta opção porque olhavam para o exemplo dos
Estados Unidos. Tentavam aplicar essa espécie de modelo republicano ao império,
republicanizar, tornar o império numa república de diferentes nações, numa
federação”.
Perante este cenário, confrontados com diversos movimentos nacionais,
os primeiros dirigentes bolcheviques tentam e conseguem integrá-los na União
Soviética, fundada em 1922, mas permitindo que mantivessem a sua identidade, e
uma estrutura interna de tipo estatal.
“Mas houve comunistas ucranianos que pretendiam mais poder, não queriam
o estatuto de república autónoma, antes um Estado soberano. Foi uma
interessante abordagem; em resultado disso a propaganda soviética aceitava
praticamente a entidade separada ucraniana. Mas depois tentaram castrá-la,
aproximar a língua ucraniana da língua russa”, recordou. “Mas a língua mais
próxima do ucraniano é o bielorrusso, seguido do polaco”, e o russo apenas
surge de seguida.
“Basicamente, Putin diz que tudo isso é falso, que Lenine é um traidor,
mesmo se considera que o colapso da União Soviética constituiu ‘a maior
tragédia geopolítica’ da época, mas quer recuar para um período anterior, para
o império russo, para o século XIX”.
Para reforçar a sua tese, Volodymyr Yermolenko recorreu a um recente
artigo de Vladislav Surkov (considerado o mentor do designado ‘putinismo’, a
doutrina de Putin), no qual defende que a Rússia tem de regressar às fronteiras
de 1918, “e da próxima vez poderão dizer que deve regressar às fronteiras do
império russo em 1914, o que significa por exemplo um significativo território
da Polónia”.
Ao prosseguir a dissecação do artigo de Putin, sustentou que o seu
principal objetivo consiste em negar a identidade ucraniana.
Mas para o académico, escritor e ativista ucraniano, “Putin assiste à
progressão para leste dos valores europeus de democracia e direitos humanos”,
acompanhou o “exemplo da Bielorrússia”, apesar do recuo do movimento de
contestação devido à repressão, e pretende com o seu homólogo de Minsk “erguer
um muro face a estes valores democráticos que se deslocam para leste, por
recearem que um dia atinjam território russo. E penso que num certo momento vão
atingir”.
Ainda na sua interpretação, Putin quis sobretudo sublinhar no seu
artigo – “e provavelmente acredita, o seu grande erro” – que os ucranianos são
russos, que o poder em 2014 foi tomado por uma minoria de nacionalistas que
impôs essa ideologia à população baseada no estigma do “anti-Rússia”, que a
população comum rejeita em geral essa abordagem, que os russos serão apoiados
quando regressarem.
“A realidade é totalmente diferente, cerca de 65% dos ucranianos pensa
que a Rússia é a principal ameaça, a ameaça decisiva, e em comparação com
outros. Por exemplo, apenas 15% considera os EUA a maior ameaça”, enfatizou.
“A maioria considera a Rússia a principal ameaça, os partidos russos
estão a perder nas sondagens, o apoio à língua ucraniana por quem se exprime em
russo está a aumentar, há quem fale russo mas considera-se ucraniano e preparado
para defender a Ucrânia”.
Através destas observações, Volodymyr Yermolenko parece sugerir que o
líder do maior país do mundo em extensão, e que pretende voltar a merecer o
respeito dos seus grandes rivais internacionais, está de algum modo fora da
realidade.
“Putin não entende o que se passa, se uma pessoa fala russo deverá
aceitar a hegemonia russa, mas basicamente em cidades da Ucrânia toda a gente
fala russo mas são muito anti-Kremlin, anti-Putin, antirrussos. É o paradoxo.
Pode-se mesmo comparar com os EUA durante a guerra da independência, todos
falavam em inglês, mas os patriotas eram anti-ingleses”.
DIÁRIOS DE KIEV – (9)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
Ucrânia: A esperança de um regresso sem medo à cidade de Donetsk
21 de Fevereiro de 2022
Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Lina Kushch ainda mantém a esperança num
regresso sem medo à sua casa em Donetsk, no leste da Ucrânia, que deixou em
2014, em pleno conflito, para se juntar à família já instalada na capital Kiev.
"O meu apartamento está fechado, uma senhora tem a chave para ver
se existe algum problema. Alugámos uma casa em Kiev e não podemos vender o
apartamento em Donetsk por ser necessário estar lá pessoalmente, devido às
novas leis em vigor e que são diferentes das ucranianas".
Lina Kushch, 55 anos, jornalista, é a atual primeira secretária do
Sindicato Nacional dos Jornalistas da Ucrânia, instalado num tradicional
edifício da avenida Khreshchatyk que sai da Praça Maidan (Independência) e onde
resistem diversos exemplares dos grandes edifícios soviéticos típicos da
arquitetura estalinista, estilo "bolos de casamento", alguns com a
estrela no topo.
Correspondente regional do diário A Voz da Ucrânia, e ainda de outros
periódicos locais, recorda com precisão o dia 1 de março de 2014, pouco após o
triunfo da "revolução de Maidan" em Kiev que afastou do poder o
Presidente "pró-russo" Viktor Yanukovych, quando a praça central de
Donetsk, cidade de um milhão de habitantes e onde nasceu cresceu, se encheu de
manifestantes.
"Traziam bandeiras da Rússia, foi o início de manifestações
contínuas na cidade. Mas muitas pessoas não eram de Donetsk, nem da região,
perguntavam qual a direção da praça principal, ou a paragem dos transportes.
Vinham de autocarro da Rússia para participar nos protestos", assegura.
Os seus pais e o filho mais novo, então com 11 anos, tinham abandonado
a cidade em maio, alguns dias antes do início da grande batalha pelo controlo
do aeroporto, para se juntarem ao filho mais velho do casal que já estudava em
Kiev. Com o seu marido, também jornalista, decidiu ficar e tornou-se numa
observadora privilegiada.
Logo em 3 de março, assistiu ao cerco ao edifício do conselho regional
(o parlamento local), onde fazia a cobertura de uma sessão. Milhares de
manifestantes exigiam a aprovação de um estatuto de federação para a região e a
realização de um referendo, com o edifício por fim invadido e a sessão
interrompida.
Já durante a guerra, em 11 de maio, as duas regiões separatistas
pró-russas do leste em rebelião aprovavam em referendo, não reconhecido por Kiev
e por margem esmagadora, a criação da República Popular de Donetsk (DNR) e da
República Popular de Lugansk (LNR).
"Donetsk era uma cidade muito calma, ninguém acreditava que a
situação piorasse a esse ponto. Mas já havia sinais antes do início dos combates,
em 26 de maio. Na retaguarda das manifestações estavam soldados russos, sem
insígnias. Eram militares ou membros de exércitos privados, muitos dos
oligarcas ucranianos tinham segurança pessoal, mas eram verdadeiros exércitos
privados".
Apesar de a maioria da população destas industrializadas e ricas
regiões do Donbass ser russófona, Lina Kushch indica que a deriva separatista
era residual e os seus apoiantes apenas mobilizavam um setor muito reduzido da
população. Subitamente, e através "de uma operação bem preparada, com o
bloqueio de edifícios, estradas, pontes", tudo mudou.
"Após o desfecho do Euromaidan, aumentou o número dos opositores à
revolta de Kiev. Tinham votado em Viktor Yanukovych mas quando ele fugiu da
Ucrânia para a Rússia [onde permanece exilado], era difícil encontrar alguém em
Donetsk que o apoiasse", em particular entre quem defendia o
prosseguimento das relações com a Rússia e contestava a nova opção pró-europeia
e ocidental do país, revela.
"Ficaram muito desapontados com a sua fuga, diziam que deveria ter
ficado e lutado, e passaram a identificar-se com novos líderes considerados
mais fortes, porque Yanukovych tinha deixado de ser o líder, tinha
fugido".
Foi uma guerra fratricida. "Lembro-me de exemplos de membros da
mesma família que combateram nos lados opostos da linha da frente, vizinhos a
combater entre si. As pessoas começaram a procurar quem tinha a mesma perspetiva
sobre o conflito", diz.
E começaram as delações, as queixas às novas autoridades, o divórcio
definitivo entre os "pró-russos" e os "pró-ucranianos", em
Donetsk, no Donbass, um vírus promovido por "minorias agressivas" das
duas fações e que alastrou por todo o país.
"No nosso edifício havia pró-ucranianos e pró-russos, no mesmo
espaço… Lembro que um nosso colega que aí vivia, exprimiu a sua forte posição
‘pró-Ucrânia’, os vizinhos denunciaram-no aos responsáveis da administração e
esteve preso duas semanas, foi espancado, tinha problemas de saúde que se
agravaram e morreu dois meses depois, sem sair de Donetsk", refere Lina
Kushch.
Um conflito violento, com um balanço atual de 14.000 mortos e muitos
mais feridos. Situado perto do aeroporto, um edifício de 12 andares onde
estavam instalados muitos ‘media’ de Donetsk foi ocupado pelas forças rebeldes,
diversas regiões da periferia foram devastadas, mas a cidade escapou aos
combates.
O deslocamento de 1,5 milhões de pessoas para as regiões sob controlo
ucraniano, hoje identificadas como "Pessoas Deslocadas" (Internally
Displaced Persons, IDF, na sigla em inglês) foi outra das consequências da
guerra civil. Entre elas, pelo menos 300.000 decidiram, entretanto, regressar
às suas regiões situadas nos territórios separatistas.
A larga maioria das pessoas reinstaladas na Ucrânia ainda não garante
qualquer ajuda, mas em alguns casos podem receber uma contribuição destinada ao
arrendamento, ou compra, de novo alojamento.
Lina Kushch refere que as crianças até aos 18 anos e os reformados
recebem 1.000 hryvnia [cerca de 30 euros] por mês. "E quem tem um trabalho
pode receber 442 hryvnia mensais [cerca de 13 euros]. Os desempregados não
recebem esta ajuda, (…) mas muitas pessoas também se envolvem na economia
paralela…".
Apesar de poder deslocar-se a Donetsk, onde está registada e possui uma
casa, Lina Kushch tem optado por não arriscar. Pelo contrário, muitos
deslocados continuam a visitar as suas regiões de origem, onde deixaram familiares,
amigos, posses.
"Mas desde 2020 que é mais difícil. Até então, podiam atravessar
os postos de controlo instalados na ‘linha de contacto’, entretanto encerrados
pelas autoridades de Donetsk e Lugansk devido ao aumento das tensões. Há muitas
pessoas que têm de viajar através de território da federação da Rússia",
esclarece.
"Partem desde Kiev em pequenos autocarros de oito, dez lugares,
entram em território da Rússia e seguem à fronteira com Donetsk e Lugansk.
Depois atravessam a fronteira com os territórios não controlados, até ao
destino, uma viagem de 27 horas a 30 horas".
Os que obtêm autorização para entrarem "no outro lado"
através dos postos de controlo situados na "linha de contacto" e em
funcionamento têm previamente de justificar o motivo, esperar pela autorização
e optar por segunda ou sexta-feira, num horário determinado.
Uma das mais eficazes formas de "russificação" de Donetsk e
Lugansk tem consistido no fornecimento em massa de passaportes à população, que
assim obtém nacionalidade russa, entregues presencialmente na cidade de Rostov,
junto à fronteira comum, após a apresentação da documentação exigida.
Nas atuais repúblicas populares separatistas vivem pelo menos três
milhões de pessoas, mas antes da guerra contavam-se 4,5 milhões na região de
Donetsk e cerca de dois milhões na região de Lugansk, informa com uma ponta de
orgulho a dirigente sindical. "Sim, era muita gente!".
Donetsk era a maior região industrial da Ucrânia, 10% do total da
população do país, mas cerca de 20% do PIB nacional. A grande maioria das
exportações também provinham daí, em particular metalurgia e indústria mineira.
Apesar do conflito e do seu estatuto separatista, em 2016 permanecia em segundo
lugar entre as 24 regiões da Ucrânia em termos de produção de bens industriais.
Lina Kushch revela nostalgia pela região onde nasceu e viveu durante
mais de 45 anos. Sabe que esta guerra não surgiu agora, está ativa há oito
anos. E que a eventual reintegração das regiões de Donetsk e Lugansk na
Ucrânia, que deseja, se vai prolongar por muitos anos.
"A desminagem vai demorar muito tempo, até que esses territórios
sejam seguros para as pessoas, e ainda serão necessários muitos anos para que a
lei ucraniana volte a vigorar nessas regiões".
Um cenário que se poderá complicar em definitivo com o reconhecimento
pela Rússia da independência das duas "repúblicas populares", e que
implicará o fim de um moribundo processo negocial.
"Se forem reconhecidas por Moscovo, Putin pode instalar as suas
tropas na região. Mas espero voltar à minha cidade, ter o direito de regressar
sempre que queira, com a minha família".
Na tarde de segunda-feira, no Kremlin, o presidente russo Vladimir
Putin anunciava o reconhecimento das "repúblicas" pró-russas. Horas
mais tarde, ordenava a mobilização do Exército para a "manutenção da
paz" em Donetsk e Lugansk”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)
DIÁRIOS DE KIEV – (10)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
Ucrânia: Kiev acorda sem sobressaltos após decisão de Putin
22 de Fevereiro de 2022
Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Kiev acordou hoje com um sol esplendoroso,
temperatura acima da média e num profundo silêncio, apenas quebrado pelo
crocitar de corvos negros sobre a Maidan, a Praça da Independência, antecipando
mais um dia ruidoso e com aparência normal.
A decisão anunciada na véspera pelo Presidente russo, Vladimir Putin,
de reconhecer as independências das duas repúblicas secessionistas pró-russas
do leste, na região do Donbass, não afetou o ritmo da cidade, apesar de algumas
expressões mais apreensivas.
Gente num rodopio em direção ao trabalho, o habitual e intenso
trânsito, grupos de jovens reunidos junto a pequenos quiosques ou à entrada de
estabelecimentos comerciais. Nas passagens subterrâneas que atravessam as ruas
e pejadas de pequenas lojas, alguns pedintes pedem uma ajuda, um ou outro
músico de rua exercita o violino ou a guitarra junto à aparelhagem de som.
À superfície, uma senhora de meia-idade instalou o seu pequeno teclado
junto a uma esquina e um som clássico dilui-se pela avenida. Mais à frente, um
homem insufla determinado a sua gaita de foles.
"A guerra prolonga-se há oito anos, por isso não é novidade para
nós. Mas agora o nosso exército é poderoso e pode mostrar o poder ucraniano.
Sobre o reconhecimento da independência das regiões do Donbass, não penso
nisso, não posso dizer nada. Penso que tudo vai ficar bem e que teremos um
grande futuro para a Ucrânia", diz Vadim, 27 anos, em conversa com um amigo
junto a uma nesga de sol.
Não longe, sentada num banco de metal, Iana fuma um cigarro eletrónico
e conversa com uma amiga, num tom muito calmo.
"Não quero falar disso porque é uma situação muito séria. Não sei
o que dizer… pode haver uma guerra, mas gostava que a Rússia e a Ucrânia
estivessem em paz. Somos irmãos, a Rússia era um país amigo e agora a situação
é muito má", diz Iana, 20 anos, loira, óculos escuros, brinco no nariz e
um sorriso triste.
Numa zona alta da cidade, numa sala exígua e atolada de livros e papéis
que funciona como sede de uma publicação universitária, o professor Viktor
Stepanenko, 60 anos, desdramatiza de algum modo a decisão do líder do Kremlin.
"Em certa medida e em termos gerais, não foi uma novidade para
muitas pessoas. Esses territórios já estavam sob controlo russo, por tropas
russas e pelo Estado russo. A única coisa que mudou foi que reconheceram
oficialmente a independência, ‘de jure’. Não como parte da Rússia, mas como
Estados independentes", disse.
Um cenário algo semelhante ao registado com a Ossétia do Sul e
Abkházia, duas regiões secessionistas da Geórgia reconhecias por Moscovo em
agosto de 2008, recorda este investigador principal do Instituto de Sociologia
da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia.
"São territórios junto à fronteira com a Rússia e podem ser
integrados sem problema, e de forma administrativa. O rublo já circula nesses
territórios, e estão a concluir o sistema de ‘passeportização’", a
concessão de passaportes russos à generalidade da população, adiantou.
"Para nós ucranianos, para as pessoas comuns, nada mudou, é apenas
uma alteração a nível judicial", sublinhou Viktor Stepanenko, numa
referência às autoproclamadas República Popular de Donetsk (DNR) e República
Popular de Lugansk (LNR), na sequência de referendos em maio de 2014, nunca
reconhecidos por Kiev e que decorreram duas semanas antes do início de um
conflito que já provocou 14.000 mortos, muitos milhares de feridos e 1,5
milhões de deslocados.
No entanto, deteta um "problema maior", que poderá emergir
após a decisão de Putin, que enterrou em definitivo os acordos de Minsk de 2014
e 2015, incapazes de garantirem uma solução política para o conflito e um
cumprimento integral do cessar-fogo pelas duas partes.
"A situação de risco é o facto de estas repúblicas reivindicarem
territórios que coincidem com os ‘oblast’ [províncias] da Ucrânia incluídos na
região do Donbass, podem argumentar que a Ucrânia está a ocupar esses
territórios e terem a intenção de os controlar na totalidade, agora que na sua
perspetiva são Estados reconhecidos", assinalou.
"Isso será um problema, porque deixaram de ser entidades para se
tornarem satélites da Rússia, e com a assinatura de Putin na segunda-feira a
incluir um tratado de amizade e apoio militar com estas repúblicas. E é por
isso que as tropas russas já entraram de forma legal", acrescentou.
Mas Viktor Stepanenko também recorda que o discurso de Putin não se
restringiu à questão do Donbass, indo mais além do previsto.
"Foi um discurso mais abrangente e colocou mesmo em causa a
existência da Ucrânia enquanto Estado soberano e independente. É a sua ideia
fixa, pensa que estes territórios pertencem ao designado império da ‘Grande
Rússia’, e sonha com a restauração de uma espécie de União Soviética",
disse, antes de recordar que em dezembro deste ano se celebra o centésimo
aniversário da fundação da União Soviética.
"Apesar dos seus sonhos, Putin poderá admitir que uma guerra
generalizada implicaria um alto preço, incluindo para ele próprio. Poderá ter
algum sucesso local no Donbass, mas a probabilidade de uma guerra total é muito
reduzida. Mas ninguém sabe, é um mundo louco…".
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)
DIÁRIOS DE KIEV – (11)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 24 de Fevereiro de 2022
Chuva e aviões militares interrompem silêncio numa Kiev quase
deserta
Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – “Chove em Kiev, coberta por um céu cinzento
e chuva miúda e persistente que se abate sobre o centro da cidade, quase
deserto e em profundo silêncio, apenas perturbado pelo ruído de aviões
militares que espaçadamente cruzam os céus, invisíveis.
“É incrível, ainda nem acredito, porque é horrível. Invadir o nosso país
no século XXI é insano e deve ser travado de qualquer forma”, diz Kostia, que
sobre apressado uma alameda, telemóvel na mão. Perto, apenas o som das sirenes
de um carro da polícia, ou de uma ambulância. Ao longe, ruído de explosões
afugenta as aves pousadas em árvores.
“Não sei ainda como parar esta guerra, temos de pensar nisso mais
tarde, mas agora temos de defender o país, defendermo-nos a nós, e todos devem
fazer o que puderem pela Ucrânia”.
Kostia, um homem de meia-idade que diz ser jornalista, talvez
caminhasse apressado para a sua redação. Está convencido que o país vai
resistir, que advertência do Presidente russo Vladimir Putin para que os
soldados ucranianos deponham as armas não sucederá.
“Isso não vai acontecer, são oito anos de guerra, os militares sabem
quem é o verdadeiro inimigo, não queremos viver sob ocupação. Se desistirem, e
não acredito que aconteça, se Putin capturar a Ucrânia haverá repressão, e será
duro. Quando pensamos nisso, a reação deverá ser erguermo-nos e combater”.
Kostas admite que a guerra possa alastrar a Kiev, que não se retenha
nas regiões do Donbass que o exército russo parece pretender conquistar na
totalidade, incluindo a estratégica cidade portuária de Mariupol, junto ao mar
de Azov que dá acesso ao mar Negro.
“É possível que chegue a Kiev, não temos a certeza sobre isso, mas
penso que os nossos militares farão o melhor possível para proteger o país”.
Ao longe, a praça Maidan é apenas atravessa por uma ou duas pessoas,
apressadas. Alguns carros cruzam a avenida. Que contraste com o dia anterior,
em que o sol iluminava a cidade mergulhada num trânsito caótico e com gentes
pelas ruas.
Frente ao grande hotel Ukraine, o centro comercial não abriu portas. No
átrio do edifício acumulam-se malas, material de reportagem. Chegam táxis, ou
veículos de transporte privado. “Estão todos a partir?” “Ainda não mas
preparamo-nos para isso”, diz uma jornalista francesa junto à sua câmara de
filmar.
Hoje, chove em Kiev, e a guerra está quase à porta. Como sempre esteve,
nos últimos oito anos.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (12)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 24 de Fevereiro de 2022
ENTREVISTA "Líderes e personalidades" continuam a
sobrepôr-se a políticas.
Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – Na Ucrânia existe um vácuo na agenda
social-democrata e a maioria da população ainda tem como referência líderes e
personalidades, em vez de organizações políticas e ideologias, disse à Lusa o
sociólogo Viktor Stepanenko.
"O problema da Ucrânia é que as pessoas ainda não estão orientadas
politicamente em torno de organizações políticas e ideologias, mas dão antes
preferência a líderes e personalidades. Votam não por ideias, mas sobretudo por
personalidades. É por isso que na Ucrânia prevalece um estilo personalista de
fazer política", assinala o académico num gabinete exíguo do Instituto de
Sociologia da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia, situada no centro de
Kiev, onde desde o átrio e pelas escadas de acesso se sucedem fotos emolduradas
de antigos investigadores.
"As pessoas votam por personalidades, e muitas organizações tinham
a designação do apelido dos políticos. Em anteriores eleições havia o partido
Bloco [Petro] Poroshenko [ex-presidente], nome já alterado, havia o bloco Yulia
Tymoshenko [ex-primeira-ministra]. Um político fundava um partido como se fosse
a sua coutada pessoal".
No atual cenário político interno, dominam duas formações de
centro-direita e de cariz populista, corporizadas pelo atual Presidente
Volodymyr Zelensky e o seu partido Servo do Povo (CH), e a formação de Petro
Poroshenko, derrotado nas presidenciais de 2019 e líder do Solidariedade
Europeia (EC).
No entanto, Viktor Stepanenko, 60 anos, denota uma diferença essencial
entre estes dois rivais políticos, decerto os principais rivais nas futuras
presidenciais de 2024 e quando as recentes sondagens os colocam lado a lado.
"Poroshenko tem uma plataforma ideológica. Pode ser considerado
nacionalista, populista de direita, mas tem coordenação ideológica, uma forte
orientação euro-atlântica em política externa e para a economia de mercado
livre", considera.
"Já Zelensky e o seu partido declaravam-se libertários, no sentido
de uma posição mais à direita que os liberais. Mas o CH não tem ideologia,
emite mensagens populistas e atua consoante os desejos das pessoas… reduzir os
impostos", sugere, ao identificar o atual chefe de Estado como uma
"mistura de vários elementos", do socialismo ao liberalismo.
"Por exemplo, a ideia que o seu partido avançou de que todas as
pessoas acima dos 60 anos devem ter um ‘smartphone’ gratuito… Estava incluído
no programa presidencial, que revela um estilo populista sem uma agenda
ideológica séria. Tem decisões muito estranhas".
O Instituto de Sociologia desta Academia multidisciplinar, realiza
anualmente pesquisa sociológica e estudos em sociologia, da qual este
investigador principal é um dos responsáveis.
O estudo "Monitorização da sociedade ucraniana" é a mais
significativa publicação anual, que abrange todas as regiões do extenso país –
à exceção, desde 2014, da região da Crimeia anexada pela Rússia e nas regiões
separatistas do Donbass, no leste.
"Desde há dois anos que registamos o facto de o covid-19 não ter
sido um problema para a população, antes as questões económicas, como o salário
ou o medo do desemprego. Mesmo o conflito com a Rússia estava em quarto ou
quinto lugar. Para muitos a guerra estava longe, mas o salário e o desemprego
estão presentes no dia a dia. Agora com a nova situação talvez as prioridades
se alterem", admite, numa referência ao agravamento da situação político-militar
entre Kiev e Moscovo.
Os estudos sociológicos também têm denotado uma "alteração
radical" da estrutura social, com a emergência de novos estratos, em
particular de pequenos e médios proprietários, em contraste com os tempos em
que a Ucrânia era umas das repúblicas da extinta União Soviética.
"Trata-se de um novo estrato social que tentou envolver-se em
negócios, nos tempos soviéticos impunha-se sobretudo a propriedade estatal, mas
atualmente na Ucrânia a quota de propriedade privada é maior que a
estatal", regista.
"O Estado envolveu-se num constante processo de privatização,
venda ao setor privado de fábricas ou propriedade estatal, agora tentamos uma
espécie de concorrência, uma forma competitiva mais transparente. Algum deste
processo iniciou-se após a ‘revolução laranja’ em 2004, um processo de democratização
e normas mais cívicas no processo económico, a maioria surgiu após a revolução do
Maidan de 2014", concretiza.
Um conceito de propriedade individual, que Viktor Stepanenko diz ser
aceite e reconhecida pela maioria da população, apesar de denotar um
"paradoxo" nesta abordagem pelo facto de a Ucrânia ser um dos países
mais pobres da Europa, com profundas desigualdades sociais, mas com partidos de
esquerda muito frágeis.
"É um paradoxo, as pessoas não são ricas, têm falta de dinheiro,
baixo nível de vida, mas são relutantes em votar nos partidos de esquerda. Em
parte, porque estes partidos e os seus líderes combatiam os oligarcas, mas em
simultâneo eram um elemento dessa máquina".
Hoje, na Ucrânia, o salário mínimo não ultrapassa as 3.000 hryvnia [100
euros] e o médio não chega aos 500 euros. Uma realidade socioeconómica muito
diferente dos tempos soviéticos "onde havia uma igualdade convencional, as
pessoas tinham o suficiente para viver, apesar de a burocracia política ter
sempre mantido mais posses".
Com a desagregação da União Soviética e a declaração da independência
da Ucrânia em 1991, impôs-se o reino dos oligarcas, que no país representam
atualmente perto de "20 famílias" e são considerados bilionários
segundo os padrões ocidentais.
"A maioria fez fortuna não porque fosse talentosa, mas devido aos
privilégios que obtiveram na distribuição da antiga propriedade coletiva. Um
bom exemplo é Viktor Pinchuk, genro do antigo Presidente Leonid Kuchma, [o
primeiro chefe de Estado após a independência e que cumpriu dois mandatos na
década de 1990]".
E precisa: "Kuchma Foi o promotor deste sistema de novos
proprietários na Ucrânia, a distribuição da riqueza nacional surgiu nesse
período. Por exemplo, Pinchuk acumulou muitas antigas propriedades sociais não
porque fosse inteligente, mas porque era familiar de Kuchma".
A situação das formações de esquerda ainda ficou mais comprometida com
a ilegalização do Partido Comunista na sequência da "revolução de
Maidan" no início de 2014, e que ainda se mantém.
"A justificação oficial para a ilegalização do Partido Comunista
na Ucrânia em 2014 foi o facto de os comunistas serem uma espécie de aliados,
uma parte colaborante e que justificava o início do que se designa de agressão
russa contra a Ucrânia", indica.
Num processo de acelerada recomposição que abrange todos os setores de
uma sociedade complexa, o sociólogo e investigador sublinha o "leque de
identificações" que os seus estudos têm revelado, com destaque para o
"reforço das pessoas que se identificam com a cidadania ucraniana".
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (13)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 25 de Fevereiro de 2022
Noite em branco nos abrigos de Kiev
Kiev, 25 fev 2022 (Lusa) – Kiev teve uma noite agitada numa cidade
quase deserta e com o bulício a decorrer nos diversos abrigos subterrâneos após
espaçados sinais de alerta sobre possíveis intensos bombardeamentos, que afinal
foram esporádicos.
Temia-se um ataque da aviação russa a pontos estratégicos, mas os
responsáveis civis e militares asseguraram que a ofensiva “foi travada”. De
madrugada, pela rua, passam dois soldados, fardados, capacete, colete
antibalas, pistola, equipados a rigor, e que se esquivam por uma esquina,
decerto direção ao seu posto. Diz-se que os russos estão a concluir o cerco à
capital ucraniana.
No caso de “ocupação” da cidade pelas forças enviadas pelo Presidente
Vladimir Putin, os dirigentes ucranianos já prometeram resistência bairro a
bairro, rua a rua, casa a casa, também assegurada pelos milhares de voluntários
já convocados após a declaração da lei marcial e do recolher obrigatório, das
21:00 às 07:00.
O piso menos dois da garagem de um hotel situado no centro foi adaptado
para abrigo, onde se chega através de um pequeno labirinto de corredores e onde
as paredes com setas impressas em folhas de papel que indicam o percurso.
“Vivo sozinha, estou muito nervosa. Pedi para ficar aqui de noite, moro
perto”, indica uma mulher loira, de profundos olhos esverdeados, com ar
cansado. Pouco se dormiu esta noite em Kiev.
“Primeiro disseram que não aceitavam, mas veio muita gente pedir abrigo
e acabaram por também nos acolher. Estou muito nervosa e não conseguia estar
sozinha em casa”.
No amplo espaço da garagem do segundo piso, com alguns carros
estacionados, improvisou-se um acampamento. Famílias inteiras sentam-se em
volta de mesas, avós, filhos e netos, que conversam em baixa voz. Uns dormitam,
outro servem-se de um café, chá, bolos, que o hotel pôs à disposição e
espalhados por diversas mesas. “Guardem os copos de plástico, já temos poucos”,
apela uma funcionária. O início do racionamento.
Muitos jornalistas estão também encurralados neste espaço. Alguns
trazem os edredons e almofadas dos seus quartos, buscam um pedaço de cartão e
improvisam uma cama. Muitos habitantes das redondezas fizeram o mesmo, e alguns
conseguem mergulhar num sono profundo.
Um jovem casal tenta confortar o seu bebé, que teima em ficar acordado
noite dentro. Muitos jornalistas de televisões também não pregaram olho, e
aproveitam para sair à rua e enviar as suas reportagens. A noite está fria, e
muitos acabam por regressar aos quartos, para pouco depois serem de novo
acordados pela receção, que avisa sobre prováveis novos ataques. De novo, a
peregrinação em direção ao piso menos dois, após o som de uma ou outra
explosão.
O dia começa a despontar, de novo cinzento. Do outro lado da rua, uma
pequena mercearia abre portas. Alguns compram pão, outros bebidas, dois
soldados totalmente equipados, com a insígnia da bandeira ucraniana azul e
amarela cozida na manga da farda, levam uma embalagem de enchidos, e também se
somem. Alguns carros cruzam apressados a rua. Alguns devem transportar gente
importante, uma coluna de modernos todo-o-terreno em alta velocidade.
Mais uma explosão, ao longe. A capital ucraniana também está só, as
forças da invasão já sabem que caso pretendam ocupá-la não terão tarefa fácil.
Mas, lentamente, vai-se instalando cansaço, ainda não o desânimo, na grande
Kiev e nos seus cinco milhões de habitantes”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (14)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 26 de Fevereiro de 2022
As marcas da guerra chegam aos arredores civis de Kiev
Kiev, 26 fev 2022 (Lusa) – O fumo ainda escapa de um dos três andares
de um prédio residencial junto ao aeroporto civil Zhiliany que hoje foi
atingido por um míssil da aviação russa, no mais recente “efeito colateral” de
um conflito sem fim à vista.
Os escombros ficaram espalhados pela rua, ao longo da avenida, milhares
de pedaços de cimento e tijolo, esferovite arrastada pelo vento, caixilhos de
janelas, fragmentos de vidro. Ainda continuam a cair despojos que se amontoam à
entrada do prédio de 23 andares, bagagens, uma bola, objetos pessoais.
Todos os moradores já foram retirados e alojados noutros locais, e
também estão vazias as lojas instaladas à entrada do edifício, um café, um
ginásio, uma loja de móveis. Alguém indica o balanço de três pessoas feridas,
uma em estado grave. Mesmo ao lado, o grande supermercado ficou intacto.
Do outro lado da avenida, os bombeiros prepararam-se para intervir,
enquanto carros da polícia cruzam a estrada em alta velocidade. Um deles pára e
três polícia fortemente armados, de farda negra, dirigem-se apressados para uma
zona das proximidades. Os carros dos civis seguem lentos e contornam os
detritos.
“Não estou certo de que os russos quisessem destruir o prédio. Mas são
russos e cometem erros com frequência. O trajeto foi assim”. E Roman, 63 anos,
desenha uma elipse com o dedo. “Eram cerca das oito da manhã”, indicou este
matemático, já reformado.
No início da abordagem tinha pedido a identificação como garantia. “Não
são da RT, pois não? Odeio-os, os russos”, disse numa referência a esta
televisão estatal da Rússia.
Roman diz que a maioria dos moradores deste bairro de altos edifícios,
que delimitam uma estrada estratégia, potencial porta de entrada das forças
russas provenientes do norte e desde Chernobyl já ocupada, optou por partir.
Alguns outros ficaram.
“Difícil, mas acreditamos que se todos abandonarmos Kiev significará
uma situação muito má para o nosso país. Devemos ser fortes e algumas pessoas
devem ficar aqui. Não tenho experiência militar, sou cientista, mas acredito
que devo estar aqui, pedi à minha mulher para sair também, recusou e decidimos
estar aqui”, conta.
O matemático diz ter escutado durante toda a noite disparos, explosões,
“mas longe”, e que só atualizou as notícias pela manhã. Diz desconhecer os
planos russos em relação à sua cidade, mas sem certezas atribuiu estas ações às
tropas provenientes da Bielorrússia, a norte, uma das três zonas por onde foi
desencadeada a operação militar, além do leste e da Crimeia, a sul.
“Não estou seguro de que o exército ucraniano esteja preparado… os
russos fizeram grandes progressos por este percurso em direção à nossa capital.
Mas acredito que o nosso exército vai conseguir travar os russos em Kiev. Não
penso que o ocidente ajudará muito, mas acredito que temos um exército mais
forte em relação a 2014”, adiantou.
Yuri, 49 anos, empresário de publicidade luminosa, mora a 500 metros do
prédio atingido e foi mais uma testemunha deste “efeito colateral”, sempre
doloroso para as populações civis.
“Muitos dos habitantes destes prédios foram para outras regiões, outros
estavam nos abrigos, talvez por isso as pessoas tenham tido sorte, ninguém foi
morto”, assinala.
Também admite que o objeto da aviação russa não seria atingir o prédio,
com os 15º, 16º e 17º andares muito danificados pelo impacto. “Certamente que
tentaram atingir o aeroporto Zhuliany, mas algo correu mal. Mas atravessamos
uma situação terrível”, indica e após elogiar Lisboa e o Porto, cidades que
conhece.
O empresário também insiste em permanecer em Kiev. “É a minha terra, o
meu país, a minha cidade. E devemos proteger-nos. A minha família está numa
região perto”.
À semelhança de grande parte da população, acredita que a vitória final
será do seu país. “Estamos a defender a nossa liberdade, soberania, terra,
país. Não sei como no terceiro milénio esta situação possa terminar com a
vitória dos invasores”, acrescenta.
Acusa o Presidente russo de mentir, diz que as suas palavras são “uma
fraude”, que não é um líder normal. “Parece-me ser o único Presidente no mundo
que mente com as suas palavras. Por vezes tento ver a televisão russa, e antes
do início da guerra não era possível sem nos rirmos. Uma explicação estranha e
falsa sobre a situação na Ucrânia…”, indica.
Yuri admite que existe medo. “Porque também receamos não permanecer um
país livre, o nosso principal objetivo é garantir a nossa soberania”.
Equipas de bombeiros atravessam os escombros e prepararam-se para
iniciar os trabalhos de rescaldo, alguns já dentro do edifício ferido. Pavel,
em tom mais descontraído, segue as operações.
Tinha uma pequena empresa que construía aquários, agora diz que o
negócio acabou e tenta outras alternativas. “Mas sorrio, mesmo sabendo que
estamos numa verdadeira guerra, que eles nos matam e nós matamo-los”.
Apesar de nunca ter cumprido o serviço militar, hoje com 40 anos, está
totalmente confiante na vitória do exército ucraniano, “que é muito forte”, e
admite combater se for necessário.
“Já foram distribuídas 80.000 armas automáticas e metralhadoras em Kiev,
incluindo aos grupos de defesa territorial e 10.000 em Lviv”, assegura.
E emite o seu balanço no terceiro dia da invasão e das operações
militares contra o poderoso exército russo. “Já têm 3.500 mortos, 100 tanques e
outros 5.000 veículos blindados destruídos”, assegura, baseado em informações
que recolheu pelo telemóvel.
No regresso, junto à embaixada da Rússia totalmente abandonada, vidros
partidos, dois carros estão incendiados, um deles da polícia. E na noite de
quarta-feira, e quando se previam fortes ataques da aviação russa à capital
ucraniana, o Presidente Zelensky emitiu um apelo aos cidadãos, também para
combateram os russos com “cocktails molotov”, numa cidade, num país, em lei
marcial e estrito recolher obrigatório.
O momento de alta tensão que se vive em Kiev foi comprovado por
jornalistas, incluindo o da Lusa, quando se dirigiam para o edifício atingido.
No caminho, três membros da polícia especial, fardados de negro, revistavam
dois homens retirados de um carro, um totalmente estendido no chão e com arma
apontada, outra ajoelhado no passeio,
Os agentes viram-se para o carro dos jornalistas, apontam as armas,
gritam. Após comprovarem as identidades deixam-nos seguir e voltam a ocupar-se
dos detidos”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (15)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 26 de Fevereiro de 2022
Kiev, a cidade barricada
Kiev, 26 jan 2022 (Lusa) – Desde quinta-feira que Kiev mergulhou num
silêncio profundo, com as suas ruas desertas, os seus parques abandonados, os
caminhos pelos jardins que homenageiam heróis de distintos tempos e ideias sem
vivalma.
Desde essa madrugada, que anunciou o início da invasão militar russa,
ficou deserto o parque onde foi construído o Arco da Amizade das Nações, uma
imensa estrutura que celebrava a irmandade dos povos socialistas, agora
desfeita.
Ficaram desertas as belas catedrais de Santa Sofia e Santo Alexander,
as igrejas e mosteiros ortodoxos, os museus que recordam o Holodomor, a morte
pela fome do início da década de 1930, ou a história da Ucrânia.
Estão sós as estátuas a heróis soviéticos ou nacionalistas, está só o
Parque Mariyinsky, as margens do Dnieper ou a imponente estátua à Mãe Pátria,
estrutura de aço, com 120 metros de altura e 560 toneladas. Escudo com foice e
martelo erguido na mão esquerda, espada com 16 metros na direita, um orgulho
dos tempos soviéticos e uma celebração intemporal à “Grande Guerra Patriótica”.
Também sós os imensos murais com as fotos dos soldados ucranianos
mortos no conflito com os separatistas russófonos do Donbass, junto à
reconstruída igreja de São Miguel.
Três milhões de pessoas fechadas em casa, após a imposição da lei
marcial e do recolher obrigatório, que foi hoje inicialmente antecipado para
começar às 17:00 e terminar à mesma hora 07:00 e depois alargado até às 08:00
de segunda-feira.
Apenas alguns habitantes aproveitaram hoje o sol para passear os seus
animais de estimação. Outros concentraram-se junto a farmácias, ou nos poucos
estabelecimentos comerciais ainda abertos. Levam caixas com mantimentos,
conservas, bebidas, produtos de higiene. O açambarcamento começou em Kiev.
Alguns carros, apressados, a polícia nervosa e determinada nas ruas, e
pouco mais. Restaurantes, bares, a maioria dos estabelecimentos, tudo vazio. A
cidade barricou-se, à espera do inimigo. E armou-se.
O hotel onde se encontram diversos jornalistas, não longe da ópera de
Kiev, foi transformado em ‘bunker’. As portas laterais e a grande entrada
giratória estão fechadas e à guarda de um funcionário. Painéis de madeira
protegem os vidros e a receção está sempre vazia.
A comida também foi racionada e é servida no abrigo improvisado, o piso
menos dois, que integra a garagem do edifício. Ao pequeno-almoço uma sandes,
uma maçã e café, chá ou água, algum leite. Ao almoço, uma sopa instantânea.
Estão sempre disponíveis algumas bebidas, sumos, por vezes, bolinhos ou barras
de chocolate. O jantar é a refeição mais reforçada, um prato geralmente com
massa e carne. E o serviço de quartos deixou de ser assegurado.
Os inquilinos estrangeiros do hotel confundem-se no abrigo com diversos
moradores das redondezas, que também foram acolhidos para se protegerem. Uma
família numerosa diverte-se com um jogo de cartas, o seu cão branco, talvez um
Akbash da Turquia, estendido num tecido almofadado, junto a um recipiente com
água, alheio ao estranho mundo dos homens e olhar sempre indagador.
Trouxeram mantimentos, colchões, cadeiras. Alguns estendem-se nos
colchões, outros juntam três cadeiras para o fazerem, muitos e muitas utilizam
apenas o edredom separado do chão por um cartão mais grosso.
Para animar, alguns trouxeram guitarras, tocam e cantam, e muitos
reúnem-se em redor para acompanhar o ritmo, gravar, fotografar. Depois, pouco a
pouco, instala-se o silêncio. Dos microfones surge mais um aviso sobre sirenes
a ecoarem na cidade, a possibilidade de novos ataques aéreos. Tenta-se dormir
mais outra noite na cidade barricada. Por quanto tempo, todos se interrogam”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (16)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 27 de Fevereiro de 2022
As “revoluções coloridas” e a vingança de Putin
Kiev, 27 fev 2022 (Lusa) – A invasão militar da Rússia à Ucrânia, além
dos argumentos oficiais do Kremlin sobre a “desmilitarização e desnazificação”
do país vizinho, também está a ser encarada como uma vingança pessoal do
Presidente russo face à recente evolução política interna.
A “Revolução da Dignidade” do inverno de 2014, que implicou a fuga do
ex-Presidente Viktor Ianukovytch – desde então exilado na Rússia e condenado em
2019 à revelia por um tribunal ucraniano a 13 anos de prisão –, sempre foi
encarada pelo Kremlin, em particular por Vladimir Putin, como uma revolta
“fabricada” destinada a afastar a Ucrânia da sua natural relação de afinidade,
mesmo que dependente, com a Rússia, no contexto do “grande mundo eslavo” que
também inclui bielorrussos.
O “Euromaidan”, também assim designado porque o pretexto da revolta foi
a recusa de Ianukovytch em promover um acordo de associação com a União
Europeia e, em contrapartida, reforçar os laços com Moscovo – em particular no
campo económico e num país muito dependente do “grande irmão” eslavo –, nunca
foi legitimado pelo Kremlin.
Mas foi dez anos antes, com o triunfo da designada “revolução laranja”
em 2004, e com Putin já há quatro anos no poder, que as relações entre Moscovo
e Kiev se começam a deteriorar.
O afastamento do “pai da independência” Leonid Kuchma, que cumpriu dois
mandatos entre 1991 e 2005, promotor do início das privatizações que deram
origem a um punhado de oligarcas próximos do círculo presidencial (como sucedeu
em simultâneo na Rússia de Boris Ieltsin), e “inofensivo” para o Kremlin, fez
soar os alarmes em Moscovo.
Em particular, a eleição em 2005, do Presidente “pró-ocidental” Viktor
Yushchenko, que derrotou no escrutínio o então primeiro-ministro cessante
Viktor Yanukovych, definido como “pró-russo”.
Apesar de se ter mantido no poder, o mandato de Yushchenko – alvo de
alegado envenenamento em setembro de 2004 que lhe deixou marcas físicas – ,
ficou assinalado pelos graves conflitos internos com a então primeira-ministra
Yulia Tymoshenko, sob acusações de traições, mentiras e corrupção.
A vida política interna ucraniana, caracterizada por uma conceção
pessoal da política em detrimento da ideologia, nunca conheceu a necessária
tranquilidade desde a independência da ex-república soviética em 1991.
As “revoluções coloridas”, em particular a ucraniana, passaram a ser
consideradas por Moscovo como uma tentativa de o “ocidente” estender a sua
influência, política e militar, para junto das suas fronteiras, e colocar em
perigo a segurança do país.
“É ridículo dizer que o ocidente tentou financiar revoluções, porque a
Rússia tentou financiar revoluções, também na Ucrânia, e os russos possuem
muito ‘soft-power’ na Ucrânia, aplicaram muito mais dinheiro entre 2000 e 2010,
influenciavam a opinião pública ucraniana através dos seus canais de televisão
[entretanto banidos], faziam o que queriam. Tinham muito mais recursos que o
ocidente”, responde à Lusa Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado
na Universidade Kyiv-Mohyla, situada na capital ucraniana.
No caso da Ucrânia, em 2003 começou a emergir o movimento Pora! (Chegou
a hora), inspirado no movimento Otpor! (Resistência!), decisivo na mobilização
que em outubro de 2000 afastou do poder o então Presidente da Sérvia Slobodan
Milosevic. Quase em simultâneo, surgia na Bielorrússia o Zubr (Bisonte), e na
Geórgia o Kmara! (Basta!).
O dinheiro para as formações, as viagens e o material destes movimentos
provinha inicialmente da Westminster Foundation for Democracy [uma fundação
britânica financiada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros e da
Commonwealth] que pagava os salários dos coordenadores. Em declarações em 2019
à jornalista de investigação e realizadora sérvia Ana Otasevic, a ativista do
Pora!, Yarna Yasynevych, indicou que recebia uma mensalidade desta
instituição.
A US-Ukraine Foundation, uma campanha financiada pela Agência para o
desenvolvimento internacional dos Estados Unidos (USaid) destinada a incentivar
os jovens em eleições, ou a Freedom House, também participaram na formação e
organização desta rede com somas avultadas. E na Ucrânia imprimiram 12.000
exemplares do folheto do norte-americano Gene Sharp “Da ditadura e da
democracia” com a ajuda da Fundação Albert Einstein, que fundou, e traduzido
para ucranianos pelos militantes do Pora!.
As primeiras ações, baseadas na “teoria da não violência” de Sharp,
foram realizadas em março de 2004 em 16 regiões da do país, com os membros do
Pora! a atuarem de forma muito discreta e sem emergir qualquer dirigente. E no
contexto das presidenciais que elegeram Yushchenko, o movimento associou-se à
campanha “Znayu!” (Eu sei!), lançada por Dmytro Potekhin, especialista em
marketing e campanhas eleitorais, que trabalhava para a Fundação Soros.
A estratégia consistia em denunciar um poder “ilegítimo”; através da
invenção de termos como “kuchismo” e que deveria ser associado a “medo,
miséria, crime”. E afastá-lo do poder através de movimentos de resistência
antigovernamentais.
Ian Marovic, um ex-Otpor!, delineou a estratégia e foi o responsável
pela ideia central da campanha: “Divulgar a imagem de pessoas com boa apresentação,
capazes e ambiciosas e que lutam pelo futuro do país. Toda a comunicação provém
destas características”, indicou nas declarações a Ana Otasevic.
E no caso de derrota, foi explícito: “Apenas significa que a população
não está preparada para mudanças democráticas (…) e nesse caso prosseguiremos o
nosso trabalho”.
Em 21 de novembro de 2004 a oposição ucraniana contestou o resultado da
segunda volta das presidenciais que deram a vitória a Yanukovych. O Supremo
tribunal anulou a votação e o candidato da oposição, Viktor Yushchenko, venceu
num novo escrutínio.
Na ocasião, o Pora! já tinha cerca de 2.000 ativistas em Kiev,
preparava-se para fomentar grandes manifestações em Maidan, mas a sua falta de
experiência demoveu-os. Mas tinham ganho uma batalha.
Na perspetiva do filósofo e ativista ucraniano, também diretor
analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org, a
questão central reside em saber se a democracia mobiliza as pessoas e as faz
descer às ruas.
“Em todos estes anos os russos foram incapazes de criar qualquer
protesto similar. Por exemplo, diziam se necessário defender a língua russa,
mas não havia protestos de massa para defender a língua russa em qualquer local
do país”, diz Yermolenko.
“O dinheiro não pode mobilizar as pessoas, se as pessoas não quiserem.
A Rússia entende isso, está a perder influência da Ucrânia, a perder os
corações e as mentes dos ucranianos, acontece há décadas, e a sua única opção é
um ataque militar”, acrescentou à Lusa.
Dez anos depois, a experiência acumulada pelos militantes do Pora!
também servirá para impulsionar a “revolução de Maidan” contra Yanukovych,
líder do “pró-russo” Partido das Regiões – o maior partido do país entre 2006 e
2014 –, e Presidente desde 2010 após derrotar Yulia Tymoshenko na segunda
volta. Na sequência da sua fuga em fevereiro de 2014, após o triunfo de Maidan,
foi organizado novo escrutínio presidencial que elegeu Viktor Poroshenko, com
uma clara abordagem “pró-ocidental”.
Yarna Yasynevych, que depois se envolveu na engrenagem política,
extraiu o balanço da “Revolução da Dignidade” de 2014, baseada nos ensinamentos
dos mentores do Otpor! sérvio.
Nas suas declarações, entendeu
que a “gestão da segurança face à polícia” foi eficaz em curtas campanhas não violentas,
como sucedeu contra os regimes de Kuchma e Milosevic. No entanto, reconheceu
que face a Vladimir Putin, e a Yanukovych, ajudado pelo líder do Kremlin, essa
estratégia não resultava por se estar perante pessoas “com a experiência do KGB
e que são mais hábeis, mais perigosas”.
Atualmente, as estações de televisão e rádio russas estão proibidas na
Ucrânia, mas ainda estão presentes e possuem alguma influência nas redes
sociais.
“Mas mesmo quando a Rússia controlava o espaço informativo da Ucrânia, os
maiores canais eram indiretamente controlados por russos. Mas não convenceram
os ucranianos a optar por essa etiqueta russa, e inventaram esse mito das
‘revoluções coloridas’ porque pensam que se pode mobilizar as pessoas para a
rua através de dinheiro, mas é ridículo”, insistiu o académico e ativista.
“E mesmo que fosse verdade, podiam tê-lo feito mais cedo, mas porque
não o fizeram? Porque não tinham hipótese, porque as pessoas pró-russas são
passivas e não querem agir, e as pessoas pró-ativas são contra o Kremlin”.
A forma de contrariar as “revoluções coloridas” foi o tema central de
um recente encontro em Moscovo entre o ministro do Interior da Sérvia,
Aleksandar Vulin, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança do
Kremlin.
No final da reunião, que decorreu no início dezembro, os dois
responsáveis concluíram que as ‘revoluções coloridas’ se tornaram num
“instrumento político tradicional de determinados centros de poder e de países
destinados a minar o Estado e promover a perda de soberania sob o pretexto de
democratização”, e assinalaram que “os países livres devem resistir a isso”.
Para Yermolenko, o objetivo foi claro: “Estão a tentar impedir qualquer
processo de democratização no leste da Europa porque atingiria a própria
Rússia”.
[Nota: Na primavera de 2019, com a vitória nas presidenciais de
Volodymyr Zelesnky, um ex-comediante sem experiência política mas que impediu o
milionário Poroshenko de cumprir segundo mandado – um claro sinal do eleitorado
ucraniano – as relações com a Rússia registaram algum desanuviamento. O novo líder de Kiev prometeu uma solução
negociada e justa para o Donbass, o leste ocupado em parte pelos separatistas
russófonos, aceitou discutir o estatuto de Crimeia, anexada por Moscovo em
2014, e combater sem tréguas a corrupção e o nepotismo a nível interno. Mas,
progressivamente, também devido a contínuas ingerências externas, tudo se
esboroou. ]”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (17)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 28 de Fevereiro de 2022
Relato de quatro dias num confortável abrigo de Kiev
Por Pedro Caldeira Rodrigues,
agência Lusa, em Kiev
Kiev, 28 fev 2022 (Lusa) – Caiu como uma bomba a notícia da invasão da
Ucrânia pelo exército russo por três frentes, um cenário até essa madrugada de
24 de fevereiro excluído pela generalidade dos analistas, fazendo lembrar o
falhanço das previsões de resultados eleitorais.
No hotel Ukraine, situado mesmo em frente à Praça Maidan
(Independência), palco das grandes convulsões políticas de início deste século
no país eslavo, o ambiente era de apreensão, como em toda a cidade.
Muitos jornalistas dirigiam-se para a entrada e entravam em direto para
as suas televisões, de costas para uma praça central anormalmente vazia nessa
manhã de quinta-feira, e livre do caótico trânsito que entope as principais
artérias desta metrópole de três milhões de habitantes.
Para o jornalista da agência Lusa foi um regresso, menos de três
semanas após a primeira deslocação e estreia no país eslavo, que decorreu entre
24 e 29 de janeiro a convite da Academia de Imprensa Ucraniana e patrocínio da
embaixada dos Estados Unidos, com deslocações às cidades de Kramatorsk e
Severodonetsk, no Donbass sob controlo ucraniano.
Os dias anteriores ao do início da invasão tinham decorrido entre
contactos oficiais e reportagens, com estadia no mesmo hotel, desta vez no 11º
andar deste edifício de referência de Kiev. Em Severodontesk o alojamento tinha
sido no Mir, Paz em eslavo, o que agora soa a ironia.
O Ukraine, construído em 1961 em pleno centro da cidade e inicialmente
designado "hotel Moscovo", foi erguido no local originalmente ocupado
pelo primeiro arranha-céus da cidade, a Casa Ginzburg, propriedade de uma
abastada família judaica e que foi arrasado pelas tropas soviéticas na sua
retirada perante o invasor alemão, em 1941. A sua construção concluiu o
conjunto arquitetónico da Khreshchatyk, uma das principais avenidas de Kiev, e
um símbolo da reconstrução da parte central da cidade após a Segunda Guerra
Mundial.
Nessa manhã, a cidade quase fechou. Deixaram de circular, táxis, e
quase todos os veículos de transportes à exceção do metro, que também passou a
servir de abrigo para a população.
Alguns jornalistas, apressados, carregaram as suas malas e equipamentos
para a bagageira de carrinhas. O átrio do hotel, com as suas colunas alinhadas,
grandes escadarias, amplos cadeirões, ficou quase deserto. Nas traseiras, já
ninguém se recolhe junto ao "Templo do Arcanjo Miguel e Novos Mártires
Ucranianos", particular local de peregrinação onde regularmente vão
prestar tributo dirigentes nacionais ou chefes de Estado, de Governo,
ministros, em visita oficial.
Há o risco de ficar só, sem contactos, sem transportes. E há a
perspetiva de tentar sair do país.
Na véspera, um alarmante telefonema do embaixador, após contacto com
Lisboa, excluiu totalmente a hipótese da viagem que estava marcada, com a
equipa da RTP, a Cândida Pinto e o David Araújo, em direção da Kramatorsk, na
linha da frente do conflito com os territórios separatistas pró-russos.
O comboio partia às 06:10, mas não deverá ter chegado ao destino.
Também foi aconselhada a saída imediata de Kiev em direção à fronteira oeste, à
Polónia. Duas carrinhas preparadas no final da manhã dessa quinta-feira, levar
o menos possível, têm de vir a pé até à embaixada, não podemos esperar, partir
rapidamente… Não foi possível e os jornalistas ficaram na capital ucraniana.
Após algum desespero, o repórter da Lusa conseguiu finalmente garantir
um táxi com a ajuda de um jornalista oficial. O objetivo foi juntar-se às
equipas da RTP e SIC – Irina Shev, Rui do Ó, Ana Moreira e Fernando Silva –
instaladas num outro hotel, num apelo gregário, de proteção, em tempos de grave
crise.
Que contraste com o dia anterior, quando se dirigiu ao hotel para onde
agora tentava alojar-se, para seguir com a Cândida e o David até um
estabelecimento onde vendem coletes à prova de bala e capacetes, na perspetiva
da viagem até ao Donbass.
Um trânsito infernal, as principais artérias cortadas pela polícia, o
impulso de saltar do táxi e fazer o resto do caminho a pé, até ao local de
encontro. Sempre a subir, nesta cidade também de pequenos montes e colinas.
Pelo caminho, veículos blindados e soldados totalmente fardados, uma,
duas pessoas, caminham com ar pensativo. No átrio do novo hotel, uma azáfama.
Chegou uma equipa da Cruz Vermelha, confirmam-se passaportes, uns no
‘check-in’, outros no ‘out’.
Na noite dessa quinta-feira, ainda se jantou no restaurante,
"self-service" com diversas opções. Mas no dia seguinte, tudo mudou.
O ruído das sirenes comprovava o início de uma guerra. Criou-se um abrigo
improvisado no último piso da garagem, foram acolhidas famílias e outros
habitantes do bairro mais sós. Estes trouxeram roupas, colchões, os seus
animais e, alguns, cartas para passarem um tempo que parecia nunca mais
terminar.
A entrada do hotel foi barricada com placas de madeira, a porta
fechada, com um aviso à entrada indicando que o hotel não funciona e que o ATM
não funciona. O piso menos dois, na garagem-abrigo, está repleto, quase sem
mais espaço. Há casa de banho, e após percorrer alguns corredores um local para
fumar. Mas os alojados no hotel mantêm privilégios, sobe-se aos quatros e
está-se à vontade.
É tempo de racionamento, também sentido no hotel onde agora apenas se
serve uma refeição quente, ao jantar e no abrigo. O pequeno-almoço, papas de
aveia, um ovo cozido, ao almoço uma sopa instantânea e sandes, e há ainda
bolachas, chocolates, sumos, água, café e chá em quantidade. A grande sala onde
se serviam as refeições está vazia. Os pratos empilhados, os recipientes para a
comida vazios. E do bar foram retiradas todas as garrafas em exposição.
Na manhã de hoje, foi possível sair à rua mais de 48 horas após um
estrito recolher obrigatório motivado pela lei marcial. As informações oficiais
falaram de "sabotadores" infiltrados na cidade, o silêncio da noite
tinha sido interrompido por rajadas de metralhadora e o som de explosões, mais
ao longe.
Nestes tempos de retiro, os jornalistas fazem diretos para as suas
televisões, após recolherem as últimas informações, ou escrevem. As refeições
são em conjunto e tenta-se decidir os próximos passos. Há contactos regulares
com autoridades portuguesas, civis e militares. E recebem-se muitas mensagens
dos mais próximos, de amigos. "Como estás? Bem? Força!".
Há mais gente à espera na pequena mercearia que fica a poucos metros do
hotel do outro lado da rua. Os enchidos empacotados, as conservas, a fruta,
começam a desaparecer. Há muitos idosos, levam enlatados, chocolates, bolachas.
Chegam três soldados do exército ucraniano, armados e fardados, têm
primazia. Compram tabaco, uns refrigerantes, e partem apressados. Um homem,
cabelo grisalho, barba branca, fardado, passa encurvado com uma enorme mochila.
Há um sentimento de comiseração entre os ucranianos. Quase que se
desculpam por também estarmos envolvidos numa situação tão imprevisível, que
agora ameaça degenerar em guerra total.
"Também lamentamos que estejam aqui, não nos queremos sentir
culpados, mas temos de defender a nossa terra", disse-me uma habitante de
Kiev durante um pequeno passeio por um parque. Mas são os ucranianos que vão
ficar aqui, os restantes estão apenas de passagem”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (18)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 28 de Fevereiro de 2022
Ucrânia: O êxodo de Kiev
por Pedro Caldeira Rodrigues,
agência Lusa, em Kiev
Kiev, 28 jan 2022 (Lusa) – A estação ferroviária central de Kiev é o
ponto de confluência de centenas, milhares de pessoas, que tentam sair da
capital ucraniana em direção às fronteiras oeste, ou a zonas mais seguras do
país.
Famílias transportam em malas o que conseguiram juntar, levam os
filhos, alguns bebés, animais de estimação. Amigos despedem-se com lágrimas nos
olhos.
À entrada, três polícias fortemente armados vigiam os movimentos. No
átrio, centenas de pessoas acotovelam-se junto dos painéis eletrónicos. Vão
partir dois comboios, um em direção a Lviv, oeste, outro um pouco mais tarde
para Ivano Frankifsk, no centro do país.
O apeadeiro está repleto de pessoas que aguardam a chegada do primeiro
comboio. Muitos não conseguem chegar, acotovelam-se, gritam, crianças choram,
um cão ladra. São sobretudo mulheres, crianças, idosas e idosos. Alguns
desistem.
Desde quinta-feira, o dia do início da invasão das tropas russas, que a
estação central de Kiev não descansa, mas os homens entre os 18 e os 60 anos
estão mobilizados para um combate que se avizinha.
As viagens são gratuitas, devido à situação de emergência nacional. E
as pessoas não têm dinheiros para pagar os mil dólares que agora se cobram para
sair da cidade até uma zona mais segura, os cinco mil dólares para rumar em
direção às fronteiras da Roménia ou Moldova, o percurso mais seguro de momento
através de uma estrada em más condições e que pode demorar 18 horas.
"As pessoas têm medo, têm crianças, querem sair daqui. Não as
censuro, mas eu vou ficar", diz Ivan, um jovem que agora transporta
pessoas na sua carrinha de dois lugares, um "negócio" com escassa
oferta e em alta.
Aos pares, polícias fortemente armados passam na parte exterior do
grande edifício. Perto, uma grande central de aquecimento a gás, que canaliza
calor para muitas habitações desta zona da cidade, com as suas três grandes
chaminés a expelir um fumo branco, contínuo. Gás vindo da Rússia e a Ucrânia
ainda é território de trânsito para que esta energia vital chegue a outras
regiões das Europa.
No percurso, carrinhas da polícia vigiam o trânsito. Um carro foi
parado, revistam os ocupantes, pedem documentos. Á frente, outro carro
esmagou-se contra um poste. Um outro carro da polícia está parado nesse local.
Kiev tornou-se numa cidade vigiada, nervosa, triste”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV (último
a partir de Kiev) – (19) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 1 de
Março de 2022
De Kiev à Moldova uma longa viagem com muitos postos de controlos
por Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa, na Ucrânia ***
Vinnitsa, Ucrânia, 01 mar 2022 (Lusa) – Uma carrinha com 11 pessoas,
entre as quais nove jornalistas portugueses, abandonou hoje Kiev rumo à Moldova
num percurso de 635 quilómetros, com paragens em muitos postos de controlo,
para uma viagem que vai demorar mais de 18 horas.
Com neve e frio, a carrinha fretada pela embaixada portuguesa, com os
nove jornalistas e duas cidadãs ucranianas, iniciou a longa viagem pelas 09:00
(07:00 em Lisboa) deixando para trás a capital Kiev, praticamente abandonada,
rumo ao sul do país até à fronteira com a Moldova, para percorrer aquela que é
considerada uma das rotas mais seguras para abandonar a Ucrânia, invadida pela
Rússia na madrugada da passada quinta-feira.
O caminho até chegar à fronteira com a Moldova vai ser longo, os carros
andam devagar devido ao tráfego intenso, pelo facto de tantas pessoas quererem
fugir de Kiev, nomeadamente mulheres e crianças, na esperança de encontrarem um
lugar seguro.
O exército ucraniano estabeleceu vários postos de controlo, tanto em
estradas principais como secundárias, para confirmar os documentos dos
viajantes, um procedimento que gera grandes engarrafamentos, com filas de
carros de vários quilómetros e atrasos de muitas horas.
Também nos postos de combustível, que já começa a escassear, se demora
várias horas até abastecer os veículos.
Ao longo de todo o percurso veem-se muitos soldados e civis com
braçadeiras amarelas, símbolo adotado pelo exército ucraniano, que já disse ter
detetado cidadãos russos infiltrados.
Depois de se abandonar Kiev avistam-se, a espaços, pequenas povoações e
vislumbram-se enormes campos de cultivos e muitas árvores. Aí os mais atentos
detetam, por vezes, alguns soldados ucranianos escondidos, mas em prontidão.
Além dos postos de controlo os militares ucranianos construíram, em
pontos estratégicos, várias barricadas, com blocos de cimento e sacos brancos
cheios de areia.
Em Vascilina, a carrinha da embaixada, que está identificada com a
bandeira portuguesa, parou para se abastecer de combustível e nessa altura
ouviu-se mais uma sirene de aviso de ataque aéreo.
Nessa estação de serviço, estavam vários soldados ucranianos e alguns
civis visivelmente nervosos e, constatou a agência Lusa, até com uma abordagem
agressiva e sempre com o dedo no gatilho.
Pelas janelas da carrinha da embaixada veem-se várias famílias a
despedirem-se de jovens fardados que, certamente, vão a caminho da linha da
frente juntar-se ao exército, já que foi instaurada a lei marcial e apenas as
mulheres e as crianças têm autorização para sair e procurar refúgio em países
vizinhos.
Os últimos dados da ONU apontam para mais de 100 mil deslocados e mais
de 660 mil refugiados na Polónia, Hungria, Moldova e Roménia que fugiram da
ofensiva militar na Ucrânia que, segundo Kiev, já matou mais de 350 civis,
incluindo crianças”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
DIÁRIOS DE KIEV – (20)
por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 2 de Março de 2022
A cidade sem luz
Por Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa, em Botosani, norte da
Roménia ***
Botosani, Roménia, 02 mar 2022 (Lusa) – Com a filha ainda bebé ao colo,
Tatiana despede-se do marido entre fortes abraços e lágrimas nos olhos na
cidade sem luz de Kamianets-Podilskyi, sudoeste ucraniano, antes de entrar na
carrinha que a transportou para Botosani, na vizinha Roménia.
"A cidade está sem luz para evitar que seja detetada pelos aviões.
E toda a população também desligou as localizações dos telemóveis", indica
Tatiana, 43 anos, após ambas se acomodarem na carrinha, onde também viajavam
jornalistas portugueses, e com Eva ainda agitada, a perguntar pelo pai. Depois,
acalma, desenhos animados no telemóvel, bolachas, e acaba por adormecer.
"Vê muitos vídeos e filmes estrangeiros, quando fala connosco
mistura palavras da nossa língua e inglês", diz a mãe, também sempre
pegada ao telemóvel para receber e enviar mensagens aos familiares próximos, e
atualizar informações.
Tatiana foi uma das três ucranianas que viajaram com os nove
jornalistas portugueses – duas equipas da SIC, uma da RTP, uma da CNN Portugal
e o enviado da Lusa - que saíram de Kiev pouco passava das 9:00 da manhã de 01
de março, numa debandada de muitos ‘media’ internacionais que se encontravam em
reportagem pela capital ucraniana. As duas primeiras acompanharam os
jornalistas portugueses desde a capital ucraniana, onde nasceram.
Após muitos contactos e uma tentativa falhada de viajar de comboio em
direção a oeste e à fronteira polaca no último dia de fevereiro, a embaixada
portuguesa conseguiu contratar um motorista e carrinha, um aluguer de 5.000
dólares repartido pelos jornalistas.
Quando Tatiana e a filha foram recolhidas às 19:00 em
Kamianets-Podilskyi, sudoeste da Ucrânia e atravessada pelo rio Smotrich, já
parte considerável do percurso de 635 quilómetros, também feito por estradas
secundárias e sinuosas, tinha sido percorrido.
A fronteira com a Moldávia não estava longe e já tinham passado dez
horas desde a saída de Kiev. Chegou-se ao destino final em plena madrugada,
quatro da manhã. Um total de 19 horas.
Quando Tatiana se juntou ao grupo, a cidade estava escura, como breu.
Apenas alguns ténues focos de luz que pareciam suspensos, pequenos retângulos
provenientes de janelas de alguns dos grandes edifícios junto à estrada. Ou dos
semáforos em funcionamento, de um ou outro veículo. Um silêncio arrasador.
A história de Tatiana atravessa as convulsões registadas nesta parte da
"outra Europa", eslava e ortodoxa. Nasceu em 1988, cidadã da União
Soviética. Obteve a nacionalidade ucraniana após a independência em 1991 após a
desagregação da União Soviética. E também tem passaporte português.
O pai era médico cirurgião militar de nacionalidade russa. A mãe também
é médica. Antes de Tatiana nascer, foram cooperantes em Moçambique. Após a
morte do marido, e por entender português pela sua estadia na antiga colónia,
decidiu instalar-se em Portugal após a independência da Ucrânia, também devido
aos graves problemas económicos do país, onde se tinha instalado. Hoje,
continua a exercer a sua profissão em Torres Novas.
"Tenho muitos amigos russos, continuamos a trocar mensagens.
Entendo perfeitamente a língua russa, tudo isto é uma insensatez, e não sei
como vai terminar", desabafa.
"A minha mãe adora viver em Portugal, e eu também gosto muito, um
país pequeno, mas muito bonito", adianta.
Casou-se em Sintra com o marido, permaneceram algum tempo, arranjaram
trabalho. Mas acabaram por regressar, até agora.
"O meu marido está na lista de mobilização, mas espero que não
seja chamado para combater. É um especialista em informática, em programação, e
julgamos que será útil nessa área", assinala com os seus olhos azuis muito
reluzentes, e um sorriso que revela esperança.
A conversa prossegue, a carrinha continua a parar nos muitos postos de
controlo montados pelo exército ou milícias ucranianas.
Montes de lenhas acumulam-se, vindas de árvores derrubadas nas pequenas
florestas das proximidades. Faz frio e continua escuro. Muitos militares,
milicianos, usam lanternas de mineiro presas aos capacetes. Outros descansam
nas barricadas ou estão junto das metralhadoras assentes em tripés. Todos
fortemente armados.
A fronteira da Moldávia, outra ex-república soviética está próxima. O
território ucraniano é abandonado a pé, algumas centenas de metros através de
uma terra de ninguém. Já na Moldávia, outra carrinha aguarda para o transporte
até à cidade romena de Botosani, extremo norte da Roménia.
Aí, as fronteiras moldava e romena estão quase juntas. Percorrem-se
poucos quilómetros para chegar à fronteira, mas a fila de carros parece não ter
fim. Passa das 22:00, e a espera será longa. O cansaço acumula-se. Por fim, o
hotel, 19 horas após a saída de Kiev, que pouco após a nossa partida foi
atacada em zonas mais próximas do centro da cidade.
Botosani estava adormecida. Finos flocos de neve receberam a comitiva.
Da janela do quarto uma pequena praça iluminada, branca, com bandeiras da
Roménia, azul amarelo e vermelho e da União Europeia (UE), as 27 estrelas, lado
a lado, presas em postes de iluminação. Um país dos Balcãs, que também ficava
no outro lado da Europa, mas que se aproximou do seu ocidente. Um desejo de
muitos ucranianos, ainda com o seu destino em suspenso, e agora marcados por
uma guerra total no seu território”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
1 comentário:
Excelentes crónicas. Muitos parabéns ao autor e meu antigo camarada no Público. Não encontrei nada de semelhante no que li noutros jornais, de cá e lá de fora. Quero dizer com semelhantes: uma combinação entre a reçportagem pura e dura (o quotidiano do jornalista, que nos leva pelos acontecimentos, pelos encontros, pela paisagem), com dados de contextualização histórica e política, muitos deles (o ideal) fornecidos em entrevistas. parabéns também ao Venerando, sempre atento ao que tem qualidade.
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