A propósito do Dia da Criança, pus-me a recordar como foram os meus tempos de criança.
Tenho memórias dos meus 3 anos, vivia então numa vivenda no chamado "Bairro Lisboa", derrubada há
poucos anos para dar origem a mais um incaracterístico prédio de vários andares.
Era “Lisboa” porque esse era o apelido do proprietário das vivendas,
mas também podia ter sido baptizado com o nome da capital porque ficava então no limite da vila,
na estrada que ía para Lisboa.
Não nasci aí, mas essa é a minha primeira memória (do "mundo" só comecei a ter memórias em 1963, aos 7 anos, como a morte de Edith Piaf ou o assassinato do presidente Kenneddy...). As vivendas tinham
um pequeno quintal de onde partia uma pequena escadaria, antecedendo a porta
de entrada. Lembro-me das ambulâncias a entrar no hospital, quase em frente da
vivenda. Conheci aí os primeiros companheiros de brincadeira. Eramos vizinhos
dos pais da Manuela Moura Guedes, tendo ficado na memória, não na minha, mas
contada pelos meus pais, uma célebre e dolorosa dentada que levei dela.
Foi uma estadia de poucos meses e não deixou muitas memórias,
regressando a Torres Vedras ainda com 3 anos, para a casa onde vivi o resto da
infância, a juventude e o início da idade adulta, a casa da Praceta ( ainda sem
nome na altura, mais tarde baptizada de Afonso Vilela), um prédio de 3 andares
(hoje de 4) e onde conheci muitos dos amigos para a vida, não só os do mesmo
prédio, mas os de prédios vizinhos ou outros que vinham brincar para aproveitar
o sossego e a segurança do local, onde raramente passava um automóvel.
Quando para lá fui, existiam apenas quatro prédios com entrada pela praceta, o meu, o do Alfredo e do Zé Carlinhos, pegado ao nosso, e com quintais quase juntos, um, mais afastado, com um grande poço pelo meio, mais à esquerda (nascente) da entrada do nosso, e outro mais a sul, a poente, separado dos dois em vértice, acima referido, pelo caminho que ligava ao pátio por detrás do Venceslau, do lado poente. Existiam outros dois prédios, a sul, à saida da praceta, um de cada lado, mas com saida para a futura Rua dos Amigos de Olivença, que hoje separa as duas pracetas.
Os prédios tinham grandes quintais, onde muita gente tinha a sua
pequena horta e árvores de fruto, ou onde se criavam galinhas e coelhos.
No meu quintal havia um limoeiro, uma videira, uma macieira (que nunca
deu nada), sardinheiras e outras flores e um cacto trazido da praia de Santa
Cruz. Num dos cantos, uma capoeira, onde a minha mãe criava galinhas, que íam
“viver” para a marquise da minha casa em vésperas de nascerem os pintos. Aí
também viveu o meu cágado, onde hibernava durante meses e passava outros dias
na nossa casa. Eu cheguei a “ensaiar” criar formigueiros numa caixa
transparente, obrigando as formigas do quintal a “emigrar”, mas com pouco
êxito, pois elas depressa fugiam do formigueiro artificial, invadindo a casa,
para desespero da minha mãe. Também “criei” caracóis em gaiolas, para fazer corridas.
Nas aventuras do quintal eramos muitas vezes acompanhados pelo Tarique
e pelo Fleg, que aí tinham as suas casotas, cães de caça que pertenciam ao pai
do Mabê. O Tarique (ver foto de cima), um grande cão pachorrento, fazia de cavalo para a miudagem…
Vou esquecer alguns, mas, par além do meu irmão Mário Luís, e do Mabê,
“viviam” no quintal e na “praceta” o Nanan a Guigui, o Alfredo, a Ana Maria. a Graça e o
Emílio Gomes, o Pedro e a Sãozinha Rosado, estes dois últimos meus primos em
segundo grau e vizinhos do andar do lado, o Zé Carlinhos, o João Camilo, o Luís
Rodrigues, o Janeca, o Rui e a Paulina Belchior, a Bélinha e, mais tarde, a
Peta e a Paula Brás, a Nini, o Raul, o Carlos e o Marcos Ferreira e tantos
outros, alguns de prédios ou ruas vizinhas ou familiares dos “pracenterenses”.
Havia uma certa hierárquia na formação dos grupos da brincadeira: em primeiro lugar, os vizinhos do mesmo prédio, depois os vizinhos do prédio ao lado, com o quintal encostado ao nosso, depois amigos e familiares comuns que visitavam os membros do "bando". As raparigas não tinham muito lugar no grupo, a não ser que fossem irmãs de alguém. O mais velhos (poucos), isto é, com mais 2 ou 3 anos de diferença, o os mais novos, com mais de 4 anos de difrença, a não ser irmãos, também não tinham lugar facilitado.
Por vezes os grupos de cada prédio entravam em guerras de pedrada entre eles, guerras que terminavam, muitas vezes, com aintervenção da avó do Alfredo, que acabava com tudo à vassourada, depois de termos partido algum vidro, e a paz era rápidamente restabelecida.
Lembro-me também de um caso curioso. Quando no prédio soubemos que vinham uns novos vizinhos para o andar de baixo do meu, correu o rumor, para tristeza de todos, que os filhos do novo casal já eram "muito velhos", isto é tinham 15 ou 16 anos. Afinal não era bem assim. Um deles (o António João) era, de facto, mais velho, com essas idades, e não se misturava connosco, mas o outro, o Janeca, era até mais novo do que a maior parte de nós.
Recordo-me do dia em que integrámos o Janeca no grupo do prédio. Tinhamos construido uma cidade, em cima de uma grande porta de madeira velha, deitada num canto comum do quintal, coberta com terra e relva, com "estradas" desenhadas pelo meio, onde "circulávamos" com os nosso carrinhos, quando apareceu um míudo novo (o Janeca), brincando sózinho, num canto, com um carrinho muito sofisticado, que virava as rodas da frente, um grande "avanço tecnológico". Ficámos todos curiosos com o carrinho e conferenciámos entre nós a melhor maneira de o abordarmos. Uns propunham que lhe roubássemos o carro, aproveitando o facto de sermos mais e, alguns, "mais crescidos", outros, que lhe propusessemos deixá-lo brincar connosco, em troca de nos deixar brincar com o carrinho dele. Prevaleceu o bom senso, falámos com ele e o Janeca deixou-nos brincar com o seu carrinho e, desde aí, tornou-se membro do grupo de pleno direito.
Daí só saímos para a escola primária, perto do cemitério, num caminho de terra
batida (ainda não havia Henriques Nogueira), rodeado de vinhas e trigais.
Mais tarde “aventurámo-nos” para um pouco mais longe, para o Liceu, a
Escola Técnica, ou a Física, situadas onde está hoje a sede do município.
No Verão, a praceta enchia-se de miudagem a inventar aventuras, a
aprender a andar de bicicleta, a jogar à bola e a tantos outros jogos, como as
escondidas ou a apanhada, ou em guerras de pedrara, mais tarde nos primeiros
“namoros”. Num certo ano resolvemos jogar hóquei, uns com patins muitos
rudimentares, outros nem com isso, mas alguém da Física, que ficava a poucos
metros da praceta, reparou nos miúdos e levou-nos para essa associação para
formar as primeiras equipas de infantis e juniores. Muitos vieram a destacar-se
nessa modalidade e pelo menos um , o Luís, ainda treina os miúdos de hoje.
Na praceta não fabricávamos carrinhos de rolamentos, porque não havia
“inclinação” para os mover, mas muitas vezes íamos ver as “actuações” dos
nossos “vizinhos”, os “malucos das máquinas de rolamentos” da Álvaro Galrão,
uma das ruas mais íngremes da vila, a rua onde vivi os meus dois primeiros anos
de vida, mas não tendo qualquer recordação desse tempo.
O dia acabava com as mães a chamarem cada um de nós para o jantar, mas
no Verão voltávamos à rua, até ser noite.
Havia dias especiais: o Carnaval, ficando a praceta no meio do corso,
que circulava pelas ruas vizinhas, e era por isso vivido com muito entusiasmo
por todos nós; o Santo António, onde organizávamos as festas do bairro, enfeitadas
com as bandeiras de papel recortadas por nós e coladas com uma mistura de água
e farinha, sendo também pretexto para a grande aventura de ir até aos Cucos
apanhar as parras de palmeira, enquanto o Venceslau fornecia as sardinhas, o
vinho e a gasosa. Com o início do Verão tinha lugar o cinema ao ar livre no
ringue da Física, o chamado “Cine Esplanada”. Como a maior parte dos filmes
eram para maiores de idade, eram exibidos à noite ou não havia dinheiro para
cinema, nas noites de sessão, naquelas em que nos conseguíamos afastar da
praceta sem os nossos pais darem por isso, a miudagem rumava para o sítio da
hoje chamada escola do avião e “assistiamos” ao filme nas traseiras do écran,
por vezes apenas sombras e luzes, e ouvindo as conversa em inglês, que ninguém
entendia mas nos permitiam uma noite de emoções. Havia ainda a Feira de S. Pedro, na várzea, onde esgotávamos a
parca mesada nos carroceis e nos carrinhos de choque. No Verão, alguns sortudos
íam para a praia passar um dia, um mês ou os três meses de férias, conforme as
posses da família de cada um, ou para a piscina do “Vimeiro” aos fins-de-semana. Também por essa época juntava-se a minha famíla e a do Mabê no Casal da Paúl, para animadas churrascadas de Verão. Havia também o dia da passagem do Rally de Portugal, por uma rua próxima da
praceta, ou de alguma etapa da volta a Portugal em Bicicleta.
Brincava-se com as caricas, construindo-se com elas e com os carrinhos
feitos de caixas de fósforos, com rodas de rolha, grandes países, onde por
vezes entrávamos em “guerra” com o país de caricas dos vizinhos. Outras vezes
fazíamos com essas caricas (tampinhas de refrigerantes) corridas de “bicicleta”
(que se prolongavam nas areias da praia de Santa Cruz), “jogos Olímpicos”,
viagens “espaciais” ao ´´armário mais alto lá de casa. Eu cheguei a fazer um
jornal manuscrito sobre a vida do meu “país das caricas”.
O “mundo” das caricas permitiu-me “viajar” para mais longe, para a casa
do Carrilho ou do To Zé, quase no extermo oposto da vila, gosto partilhado
também com o Jorge Pereira.
A “loucura” pelas caricas motivou, aliás, uma das maiores aventuras
desses dias de criança. O exame da 4ª classe era feito em Lisboa, no Liceu
Passos Manuel e, nessa ocasião, fiquei alguns dias hospedado em Lisboa com a
minha mãe, juntando-se a nós o Jorge Pereira e o Rogério, com as respectivas
mães. Acabado o exame, e tendo todos passado, fomos dar uma volta por Lisboa.
No Rossio existiam muitas esplanadas e muitas “caricas” espalhadas pelo chão,
algumas “raras” de encontrar em Torres Vedras. Comecei a apanhá-las e, às tantas,
dei por mim, sozinho, no meio de uma imensidão de gente. Pouco depois encontrei
o Jorge Pereira e, ainda mais à frente, o Rogério, todos perdidos das mães.
Fomos andando até ao início da rua do Coliseu, ao lado do D. Maria. Aí juntou-se uma pequena
multidão à nossa volta, até aparecer um polícia, que nos deu “vinte e cinco
tostões” para irmos para casa (como se nós soubéssemos onde estávamos
hospedados!). De repente, chegaram as nossas mães, muito aflitas, o Jorge levou
logo uma palmada, a minha mãe, com o nervosismo, desatou a rir. Resolvido o
assunto, e como o polícia já tinha desaparecido, comprei um gelado com o
dinheiro que ele me deu e continuámos o nosso passeio, não acabando por aí a
ventura. No Castelo de S. Jorge, chamado pelo Jorge para ver uns patos bébés,
resolvi atalhar caminho por cima de umas nenúfares, mergulhando todo vestido
num lago. Para mim, só havia plantas em terra firme, e não conhecia a
capacidade das nenúfares de viverem no meio da aquático. Só regressámos aos
nossos aposentos depois da roupa ter secado, ao sol, nas muralhas do Castelo de
S. Jorge.
Mais tarde, o gosto pela BD resultou na criação do fanzine Impulso no
Liceu, juntando mais um “lote” de novos amigos para a vida (Mário Rui, Vilhena,
Antero, Esteves, Zico, Calisto…).
Como o meu avô tinha uma papelaria, oferecia-me muitas revistas de BD,
um dos passatempos caseiros, lendo as aventuras das revistas “Zorro”, “Falcão”,
“O Foguetão” ou, mais tarde, o “TinTin”, sem esquecer a leitura das páginas
dominicais do “Reizinho” e do “Príncipe Valente” do Primeiro de Janeiro ou dos
Peanuts nas páginas do Diário de Lisboa.
Outro passatempo era a compra e troca de cromos, com vários temas, dos eternos jogadores de futebol, ao jogadores de hóquei, passando pelo filmes da Disney, pela história natural e de Portugal, pelos monumentos ou pelos cromos das pastilhas elásticas como os Beatles.
Também por essa altura, íamos aos Cucos apanhar musgo para os nossos presépio mais modestos. O meu era feitocom figuras de papel, pertencentes à minha mãe, com origem em figuras editadas pelas revistas da sua infância, o Diabrete, o Mosquito, ou o Cavaleiro Andante. Mais tarde a árvore de Natal, um pinheiro que o meu pai comprava, tornou-se dominante na época natalícia.
Anualmente, uma vez pelo Natal, outra vez pelo Verão, deslocava-me para “fora do Universo” da Praceta.
No Natal, ia com a minha mãe, de comboio, a Lisboa, à zona do Chiado
para as compras de Natal, e lembro-me da forma como ficava a salivar com as
montras cheias de brinquedos que eu nem imaginava que existiam.
No Verão, íamos todos de comboio, numa viagem interminável, até Coimbra,
visitar os meus avós paternos.
Fomos fazendo outros amigos para a vida no Liceu e nas férias de Verão
de Santa Cruz, e íamos crescendo à medida que o nosso universo se alargava,
cada vez em maior velocidade, até chegarmos à idade adulta.
Muito fica por contar e recordar, mas aqui deixamos um pequeno apontamento de alguém que teve uma infância privilegiada, sem saudosismos balofos, nem confundindo os belos tempos da infância com os “negros” tempos da sociedade portuguesa de então.
9 comentários:
Adorei ler!!! Todo esse percurso me é familiar.
Tão giro!!! Gosto imenso destas histórias!!!
Um grande abraço!
Gostei de recordar! Obrigada
Lembro-me bem desses tempos. Dos Jogos de futebol no meio da pra cera; dos Jogos contra uma equipa que jogava num campo ervado em frente da Física de hoje; das festas de Sto. Antonio na pra cera; das tardes de ping-pong numas instalações da Câmara por cima da antiga esquadra da polícia; das guerras contra outro grupo (do Moura Guedes) ; dos Jogos de hóquei na antiga Física que deram origem às primeiras escolas de hóquei com o treinador Carlos Miranda; da apanha de girinos nos poços que haviam perto da primária; Bons tempos!
Caro Luís, lembro-me de um galo que tu tinhas que era um terror e andava atrás da miudagem, como se fosse um cão raivoso, quando fugia da capoeira. Lembro-me também de nos ensinares a "fabricar" bonecos de papel, bidimensionais, com os quais construiamos exércitos, tribos de índios, cowboys. Há pouco tempo fui dar com alguns desses boneco que tinha guardado.Um abraço.
Terrível galo. Só a senhora que ía lá a casa fazer limpezas conseguia entrar na capoeira para tirar os ovos. 😂
Os tempos podiam ser “negros”, mas essa infância foi colorida e luminosa.
Gostei muito de ler. Obrigada
Sim, fui viver para a Praceta, pelo que percebo, mais tarde. Eu, meus pais fomos para o r/c, onde viviam a Guigas e Mabê... tínhamos saído de Setúbal, grande cidade, porque a minha mãe quis voltar a Torres, após a morte do meu irmão, em Angola, em 69...
Péta
Enviar um comentário