A Guilhermina Pacheco, num seu post recente no facebook, para recordar o saudoso Jorge Barata, no seu dia de aniversário, veio lembrara-me os dias passados no Festival de Cinema da Figueira da Foz.
Então nos meus 20 anos, deslocava-me anualmente a esse importante
Festival de Cinema, aí pelos finais dos anos 70, início dos 80, ao longo de
mais de 6 anos.
O Festival realizava-se em Setembro, ao longo de 10 dias, e era a
“pré-temporada” antes do inicio das aulas, que então só começavam em Outubro, marcando
o encerramento das férias de Verão, geralmente antecedido pela habitual romagem
à Festa do “Avante”.
Recorde-se que esse festival realizou-se, pela primeira vez, em 1972,
então ainda apenas uma “semana internacional de cinema”, destacando-se, entre
os organizadores, o padre José Viera Marques, que no início dessa década também
colaborou com o Cine Clube de Torres Vedas, tendo um papel importante na reanimação
desta associação torriense.
Nos primeiros tempos, porque ainda estava a estudar e, depois, porque
estava no início da minha vida profissional, o dinheiro era pouco e deslocava-me
para o festival à boleia, levando quase um dia inteiro para chegar à Figueira,
saindo de Torres Vedras, umas vezes sozinho, outras acompanhado.
Lembro-me de, para além das horas intermináveis à beira da estrada, muitas
vezes no meio do nada, à espera da próxima boleia, ter apanhado alguns sustos,
o maior de todos numa boleia que me deu um camionista, numa camioneta de carga
muito velha, que se deslocava lentamente pela N1 (não havia então
autoestradas), com uma enorme fila de carros atrás a apitar e a circular aos
ziguezagues, porque, descobri já em andamento, o homem estava completamente embriagado.
Felizmente este percurso foi curto.
Quando já tinha algum dinheiro, deslocava-me de comboio, pela linha do
Oeste, uma longa viagem de várias horas, por vezes com transbordo na Bifurcação
de Lares, uma estação que era uma espécie de ilha no meio do Mondego, onde se
fazia a ligação entre a linha do Oeste e a linha entre de Coimbra e a Figueira,
na qual, muitas vezes, aguardávamos horas por uma ligação, com a Figueira à
vista ao longe e com milhões de mosquitos a rodear-nos.
Chegado à Figueira, acampava-se onde desse. Da primeira vez fiz
campismo selvagem, na margem sul do
Mondego do outro lado da Figueira, junto de um parque privado, mas do lado de
fora para não pagar nada.
De manhã viajava num barco que levava passageiros desse parque para a
Figueira, mas à noite, quando acabava o festival, não havia essa ligação e
então tinha de percorrer alguns quilómetros a pé, atravessando a velha ponte,
hoje demolida para dar lugar à actual, sozinho, em plena escuridão.
Certa vez, ao aproximar-me da tenda, fui cercado por uma matilha de
cães e só me safei porque costumava levar um rádio de pilhas, para tornar a
jornada nocturna menos penosa, e pus o som no máximo. Os pobres cães,
esfaimados, mas ainda mais assustados, lá me largaram, e eu escapei sem uma
única dentada.
Mais tarde, quando já tinha mais dinheiro, ía acampar no parque a norte
da Figueira, que mesmo assim ficava bastante longe do local onde se realizava o
Festival.
Na Figueira encontrava-me com amigos de Torres Vedras, gente do
movimento cineclubista, e colegas da faculdade que também costumavam ir ao
Festival.
Nos primeiros tempos, em que andava mais teso, lembro-me de a Guilhermina
e o Jorge, que íam partir para outras viagens nesse dia, me terem deixado uma sandes de omelete para o
meu jantar, uma iguaria para quem andava sempre esfomeado para poupar.
Quando comecei a ir como repórter do jornal “Badaladas” e, num dos
anos, também do “Diário de Lisboa”, a situação era um pouco melhor, pois tinha
direito a senhas de refeição, para além dos bilhetes de borla para as sessões
de cinema, realizadas em várias salas, mas principalmente no Casino.
Nessa altura era a minha vez de ajudar amigos esfomeados, levando-os
comigo às recepções de lançamento de filmes e apresentação dos realizadores,
para as quais tinha convites, e onde serviam excelentes e saborosos aperitivos,
que substituíam bem as refeições.
Lembro-me também de, em certa ocasião, já não tendo mais dinheiro para
pagar o campismo e tendo esgotado as senhas de refeição, preparando-me para
regressar no dia seguinte, dando uma volta naquela que seria para mim a última
noite no festival para me despedir da Figueira, ter encontrado, no chão, uma nota de cinco
“contos” (cerca de 25 euros na moeda actual), muito dinheiro para época, e que
me permitiu ficar mais 3 dias, dando até para pagar refeições a quem me
acompanhava.
A maior parte do tempo era passado dentro das salas de cinema e nos
debates, começando o dia às 8 da manhã e terminando aí por volta das 2 da manhã.
Por vezes, quando os filmes eram menos interessantes, aproveitava-se
para dormitar e recuperar de noites mal dormidas.
Fora das salas, o tempo era ocupado com as refeições, a visita a uma
livraria junto ao casino, apenas para ver novidades que não existiam em Torres,
pois raramente dava para comprar alguma coisa, e conversar com amigos no café
frente ao Casino.
Na mesa cruzavam-se os amigos de Torres , do cineclubismo ou da
Faculdade e outros feitos no Festival, como o Mário Dorminski, que criou o
Fantasporto, para cuja inauguração me convidou, o João Lopes, critico de cinema que conhecíamos
da presença nos debates do Cine Clube de Torres, o Carlos Pessoa, jornalista
fundador do Público, conhecido dos tempos dos fanzines, o António Loja Neves,
do mundo cineclubista e, nas mesas vizinhas, juntavam-se figuras mais ou menos
conhecidas, como um Eduardo Prado Coelho, presença habitual no festival, muitos
cineastas e artistas conhecidos e, num certo ano, a escritora Marguerite Duras,
que veio apresentar ao festival um filme realizado por ela
Uma vez cheguei mesmo a fazer parte do júri do festival, como
representante do público, o que me obrigava a ver atentamente todos os filmes
em competição.
Por vezes passeava-se pela praia, famosa por ter o mar bastante longe.
Certo dia, passeando com um amigo de Lisboa, o Rui da “avenida de Roma”
(não me lembro do apelido e perdi-o de
vista, até hoje), que chegou a ser uma espécie de manager dos Xutos e Pontapés
(ou os Minas e Armadilhas, já não me lembro), encontrei duas colegas da
faculdade, com quem passámos a tarde na conversa e a fazer horas, porque havia um filme
importante que ía ser estreado essa noite, e não o podíamos perder. Em certa
altura, essas colegas convidaram-nos para ir passar a noite com elas ao hotel
onde estavam, mas nós, mais interessados no filme, declinámos. Claro que elas
nunca mais nos falaram, nem quando as encontrava mais tarde na faculdade de
Letras.
Outra vez, estando numa das salas do Casino, vendo afixado um belo
cartaz do filme “Cerromaior”, olhando para todos os lados, e vendo apenas uma
pessoa sentada num sofá, resolvi arriscar e arrancar o cartaz da parede para ficar
com ele, com o olhar complacente e um riso irónico nos lábios da tal pessoa.
O filme “Cerromaior” era exibido nesse dia e, geralmente após a
exibição, seguia-se um debate com o realizador. Qual não foi o meu espanto
quando foi apresentado como realizador o tal “tipo” que. sentado no sofá,
assistira horas antes ao meu “roubo”. Era o realizador Luís Filipe Rocha, com
quem me voltei a encontrar uns anos depois, em Torres Vedras, quando aqui
exibimos um outro filme seu, tendo-nos então divertido muito com essa história
do “roubo do cartaz”.
Quando as aulas começaram a ter início em Setembro deixei de poder ir
ao festival, que entretanto entrou em decadência, até acabar de vez em 2002,
engolido por festivais mais sofisticados, por uma certa decadência do cinema não
comercial, e por um consumismo menos dado a experimentalismos da programação do
festival.
Muitas outras histórias ficam por contar, mas aqui ficam algumas para diversão de quem nos lê e para avivar a memória de quem participou nesse saudoso festiva de cinema.
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