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segunda-feira, 11 de março de 2024

O Ressentimento dá votos


Em momentos como este, recordo-me muitas vezes de uma conversa com o meu saudoso amigo Carlos Cunha : numa dada ocasião, não me lembro qual, em que lamentava determinado resultado eleitoral, respondeu-me: “ Estás preocupado? Descansa, que a maior parte dos que votou neles vai sentir e sofrer mais na pele o que eles vão fazer, do que tu ou eu”.

Como dizia Paulo Raimundo em plena campanha, “não confundimos os eleitores desse partido com o dito partido”, ou, como afirmou ontem Pedro Nuno Santos, “não existem em Portugal 18% de portugueses racistas e xenófobos”.

O que aconteceu foi que esse partido explorou os sentimentos mais primários que cada um de nós sente perante as injustiças do mundo.

Usando a propaganda das redes sociais com eficácia, a demagogia do combate à corrupção (o pior cancro da democracia), o abandono de partes significativas da população à voragem das elites económico/politico/sociais, esse partido conseguiu federar todos os descontentamentos acumulados por governações desastrosas, num mundo onde as grandes decisões económicas e financeiras, que afectam a vida de cada cidadão, estão entregues a instituições não eleitas e sem controle pelos cidadãos, seja o BCE, a Comissão Europeias, ou…o Ministério Público.

Claro que esse partido não tem nada para oferecer ou gente capaz de ir além da propaganda demagógica e da exploração de ressentimentos e sentimentos de intolerância social.

Como partido que fez do combate à corrupção o principal tema da sua campanha, não deixa de ser curioso que tenha , entre os seus principais apoiantes e dirigentes, um “preso por violência Xenófoba”, um líder de uma “rede de tráfico de armas”, detido pela PJ, um “candidato que disparou para matar” acusado pelo Ministério Públio, um segurança do líder “julgado por agressão” e por “sequestro, falsificação de documentos e roubo”, agressões ocorridas numa discoteca nocturna de Torres Vedras, o responsável por uma imobiliária insolvente, com uma dívida de 300 mil euros, um vice-presidente de uma distrital condenado por pequenos furtos e burlas, entre os quais a caixa de esmolas de uma Sé Catedral, outro acusado por ameças a jornalistas e ainda um outro condenado por violência doméstica, sem esquecer um conhecido líder de uma extinta organização terrorista que cometeu crimes de sangue (leiam a reportagem de investigação “A Grande “família” do Chega” publicada no jornal Público de 25 de Fevereiro último).

Infelizmente, guiados pelas redes sociais, vivemos num mundo onde a boçalidade rende mais votos que o debate racional, onde a velocidade de imagens e textos decontextualizados influenciam mais uma opinião que umas horas de leitura atenta, onde o ter conta mais do que o ser, onde todos se atropelam pelos “15 segundos de fama”  e pelo exibicionismo balofo de pequenas vaidades pessoais, onde quem pensa de forma diferente da nossa não é um adversário com quem se dialoga de forma civilizada, mas passa a ser encarado como inimigo contra o qual devemos descarregar toda a nossa raiva intolerante, “valores” inteligentemente explorados para minar a democracia em proveito próprio (será bom recordar que Hitler chegou ao poder através do voto democrático).

Nuno Ramos de Almeida escreveu hoje no Diário de Notícias:

“Foram precisas muitas gerações a lutar, muitas centenas de pessoas presas e torturadas e muitos mortos para termos conquistado a liberdade de palavra e de votar livremente.

“Pela primeira vez, desde há quase meio século, temos um partido claramente contra a revolução democrática com uma grande votação. Não quer dizer que os seus eleitores sejam admiradores do fascismo, quer dizer que muitas promessas desta revolução, interrompida a meio, não foram cumpridas.

“Vivemos, há dezenas de anos, num sistema em que a maioria das decisões económicas estão fora da decisão democrática.

“As pessoas sentem necessidade de protestar contra um sistema que dá sempre quase tudo aos mesmos, embora o seu proteste falhe, no meu entender, o alvo: não são os imigrantes, os ciganos ou as populações dos subúrbios que são culpadas deste falhanço (…). Continuamos a precisar de um sistema mais justo e igualitário que dê a toda a gente o que merece e é necessário”.

Também nos merece a atenção a opinião de António Brito Guterres, nas páginas do mesmo jornal, analisando os “ressentimentos” que estiveram na base do resultado eleitoral da direita intolerante:

“O Chega é de extrema-direita, fruto da visão dos seus ideólogos, mas a maior parte dos seus votantes não o são (…). O ressentimento explorado pelo Chega é cúmplice das atuais hegemonias económicas e um aliado para a sua perpetuação. É um garante de que o bolo cada vez maior da precariedade entre nós não aja numa consciência colectiva que poderia ameaçar o poder instituído.

“A riqueza aumenta, mas concentra-se num grupo cada vez mais restrito de pessoas. Os lucros atingem valores recorde, mas o risco de pobreza sem transferências sociais mantém-se superior aos valores de 1994. O Chega não vai resolver esta décalage, é um aliado sistémico para a sua expansão.

“Querem verdadeiramente combater o Chega? Saiam dos gabinetes, criem saber político instalado, deixem a população participar verdadeiramente, e filiem as pessoas como comandantes de uma mudança social”.

O ressentimento, a intolerância, a desinformação, a xenofobia, não vão construir nada de novo para o país e para as pessoas, vão funcionar apenas como uma válvula de escape para as frustrações colectivas ou pessoais, que nos desviam da verdadeira resolução dos problemas importantes que  temos de enfrentar, na habitação, na educação, na saúde, na solidariedade social, num mundo cada vez mais violento e desigual.

Uma travessia no deserto, à esquerda, pode ser benéfico, se esta souber reflectir sobre os seus erros e conseguir responder aos verdadeiros anseios das pessoas, mesmo daquelas que votaram na extrema-direita.

A democracia tem essa vantagem, não acaba no dia das eleições, respeita as minorias e a liberdade e funciona para além do voto, todos os dias, na sociedade e, como se costuma dizer, existem mais marés que marinheiros, ou, rematando como Carmo Afonso na sua crónica de hoje no jornal Público, o “dia de hoje é de festa para alguns e de profundo pesar para outros (…). É o jogo da democracia. Digo-vos que nem a festa nem o pesar nos podem dispensar de pensarmos bem nisto tudo”.

 

 

 

 

 

 

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