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segunda-feira, 5 de julho de 2021

Ainda a propósito do “branqueamento da História” no Congresso do MEL (2)- As falácias de Nuno Palma.


O tão propagandeado “congresso das direitas”  (mais “fel do que MEL”), pouco mais serviu do que para revelar  a pobreza banal e bolorenta das ideias dessa família política portuguesa, incapaz de mobilizar  e inovar, mas revelador do seu desespero perante a possibilidade de se verem arredados do poder nos próximos anos.

Esse desespero terá contribuído para o radicalismo de algumas comunicações, destacando-se, no meio da pobreza geral,  pela retórica cuidada, inteligente e agressiva, a intervenção de Nuno Palma (ver reprodução em baixo).

Tratando de um tema interessante, “as causas míticas da divergência económica portuguesa”, apresentou algumas reflexões a considerar e que, caso orador não se tivesse deixado levar pelo ambiente revanchista dominante, até podiam ter enriquecido evento tão medíocre.

O problema foi quando começou a fazer comparações absurdas entre o Estado Novo e o Regime Democrático.

Partindo de uma verdade histórica, os níveis de crescimento económico observáveis na década de 60, até hoje inigualáveis, procurou extrapolar, de um simples gráfico estrutural, baseado no PIB, sem a devida contextualização, uma certa “superioridade moral” da economia do Estado Novo em relação ao actual regime.

Entusiasmado pela sua aparente “descoberta” e “novidade” (há anos que Fernando Rosa e outros historiadores falam do tema), e pela reacção da plateia, acabou a debitar uma série de falácias, meias-verdades e bombásticas frases propagandísticas, que fizeram estalar o verniz da aparente “objectividade cientifica “da sua “verdade”.

Sobre a correcta análise e contextualização desse gráfico, já outros fizeram a desmontagem do “mito” dessa comunicação de Nuno Palma ( José Pacheco Pereira , “A indústria de falsificação do Estado Novo”, in Público de 5 de Junho de 2021; Fernando Rosas, “O Milagre da economia sem política”, in Público de 20 de Junho de 2021;  Luís Reis Torgal, “E se só a Ciência for revolucionária”, in Público de 28 de Junho de 2021; António Barreto , “Sim, é verdade”, in Público de 3 de Julho de 2021).

Como escreveu Pacheco Pereira noutro texto, usando-se o mesmo estratagema também se conseguia facilmente demonstrar a “superioridade” do modelo de “desenvolvimento económica” do regime hitleriano em relação à República de Weimar ou do Stalinismo em relação ao regime czarista ou  da União Soviética em relação aos primeiros anos de democracia Russa.

Como se sabe, usar a evolução do PIB, a frio, sem contextualização, para comparar níveis de desenvolvimento, é falacioso e tem sido motivo de debate aceso entre economistas e historiadores. Hoje, aliás, têm sido ensaiadas outras formas de medir o desenvolvimento, que distinga o mero crescimento do verdadeiro desenvolvimento económico, que tem de ser também social, humano e cultural, como acontece com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)  ou como o índice Gini, que mede a desigualdade económica.

Ambos esses índices não estão isentos de críticas, como sucede com qualquer tipo de rating, que analise situações macroeconómicas, pois, não se pode resumir as complexas relações humanas e socias, a base do estudo histórico e social,  a meros “campeonatos” estatístico.

Muitas vezes o PIB compara economias que "produzem ricos" com economias que produzem riqueza, não distinguindo a desigualdade na distribuição dessa riqueza ou os métodos,muita vezes desumanos e antisocias como ela é alcançada, o que, aliás, acontecia no Potugal doa anos 60.

Mas o mais grave e falacioso da comunicação de Nuno Palma não foi só essa questão.

Uma das frases bombásticas do orador, levado provavelmente pelo ambiente favorável de uma plateia rendida ao radicalismo, foi a de dizer que “desde o 25 de Abril Portugal é um regime de Esquerda”, considerando que, mesmo “a única excepção duradoura é a década de Cavaco Silva com um programa até social-democrata” e que “a nível europeu isto até é centro-esquerda”.

E começa aqui o desfilar entusiástico e delirante de falácias.

Até Cavaco é de “esquerda” (“social-democrata”) e assim arrumam-se, sem hipótese de argumentar, 48 anos de democracia, ideia que pode ser facilmente desmontada consultando a lista e o tempo dos governos, democraticamente eleitos, convém recordar, desde o 25 de Abril.

Dando de barato que o PS sempre governou “à esquerda” e que todos os governos provisórios  liderados por Vasco Gonçalves (com ministros do PSD e PS) foram dominados pela esquerda, contabilizamos 286 meses de governo “à esquerda” e 272 à “direita”, mais 29 meses de governos “ao centro”, considerando como centrista o 1º governo provisório, com Sá Carneiro como ministro, o governo de Pinheiro de Azevedo, dominado pelo PSD  e pelo PS, e os governos de Nobre da Costa, Mota Pinto e Maria de Lurdes Pintasilgo, aquele argumento cai pela base.

Recorde-se, aliás, que o “esquerdista” Cavaco Silva chefiou o governo durante 120 meses, grande parte em maioria absoluta.

Recorde-se que a “direita”, coligação entre CDS e PSD, governou também em “maioria absoluta”, 40 meses com a AD e 77 meses com Passos Coelho…ah! mas esta gente, para Palma, é suspeita de governar em “social-democracia” ou ao “centro-esquerda”!!

A única maioria absoluta à “esquerda” aconteceu como o primeiro governo de Sócrates, cerca de 48 meses, um governo, aliás, muito bem recebido por alguns pensadores da direita neoliberal, exactamente por tomar muitas das medidas antissociais preconizadas pelos “Nunos Palma” da época…

A ideia de Palma é quase tão absurda como a cassete das “políticas de direita” do PCP.

Mas Palma vai mais longe nas suas atoardas. Em certo momento, tomado de delírio, vem em defesa do Chega. Porque ilegalizar o Chega? (nós também não concordamos com essa intenção). Segundo ele existem razões, sim, é para ilegalizar a “extrema-esquerda”, o BE ou o PCP, por exemplo, até porque, ao contrário do Chega, “o PCP é um partido anti-democrático” e insurge-se contra o museu do Forte de Peniche que , citando o programa da instituição, é “uma homenagem aos presos políticos que lutaram pela democracia” o que para Palma são “os tais do PCP que lá estiveram presos” (aplauso entusiásticos).

É provável que a maior parte dos presos políticos no Estado Novo, nomeadamente os que estiveram presos em Peniche, fossem do PCP, mas a afirmação ignorante e falaciosa de Palma ignora tantos presos políticos, das mais variadas tendências, que por lá passaram, bem como as razões do papel histórico do PCP no combate à ditadura, afirmação grave feita por um professor universitário que se diz objectivo e contra “as ideologias”.

A forma como ele enfatiza esta parte da sua intervenção, e o entusiasmo que ela provocou entre a assistência, demonstra que entre a assistência há muita gente que acha que, se eram “comunistas”, então até mereceram a prisão!!

Outra afirmação de Palma que mereceu aplausos entusiásticos da assistência: “a extrema-esquerda controla a educação”.

E “extrema-esquerda”, para ele, é o Bloco de Esquerda, o PCP e até sectores  do PS, classificação tão absurda, dita por um professor universitário, como classificar o PSD, o CDS  ou a Iniciativa Liberal como de “extrema-direita”.

E em que é que Palma fundamenta a sua argumentação? na citação cirurgica de uma parte do programa oficial de História do 12º ano : “…reconhecer que [o Estado Novo] …impediu a normalização económica e social do país” e, outra  falácia, como o demostrarei mais à frente, uma sugestão de trabalho sobre o Holocausto, “associando o Holocausto ao Estado Novo”, uma situação que, se fosse verdadeira, eu também consideraria absurda.

Insurge-se ainda com a bibliografia dominada por autores “marxistas”, como Hobsbawn e Fernando Rosas.

Fiz aquilo que Palma recomenda, fui consultar o programa disponível na página do Ministério da Educação e…até eu fiquei espantado com a falta de seriedade das afirmações de Palma!!!:

No Módulo 7, “Crises, embates ideológicos e mutação cultural na Primeira Metade do Século XX”,  o “conteúdo” 2.5 tem como título “Portugal: O Estado Novo” refere, entre outros, um conteúdo especifico sob a seguinte designação: “uma economia submetida aos imperativos políticos: prioridade à estabilidade financeira; defesa da ruralidade; obras públicas e condicionamento industrial; a corporativização  dos sindicatos; a política colonial”.

No final deste módulo refere como “aprendizagem a reter”, reconhecer “ que, no Estado Novo, a defesa da estabilidade  e da autarcia se apoiou na adopção de mecanismos repressivos e impediu a modernização económica e social”.

Esta “prendizagem” não se refere a todo o período do Estado Novo, mas à época antes do final da 2ª Guerra. Palma interpretou-a como uma “aprendizagem” mais generalista porque, ou lhe convinha a meia verdade, ou não reparou que o Estado Novo volta a ser analisado no Módulo 8, referente agora ao período do pós guerra, onde se estuda “Portugal do autoritarismo à democracia”, referindo-se no ponto 2.1 deste capítulo o “imobilismo político e crescimento económico do pós-guerra a 1974”. Repito : “CRESCIMENTO ECONÓMICO”!!!!

E neste ponto indicam-se como “aprendizagens relevantes”, relacionar “ a fragilidade da tentativa liberalizadora e da modernização económica do marcelismo com o anacronismo da sua solução para o problema colonial” e “reconhecer a modernização da sociedade portuguesa nas décadas de 60 e 70, no comportamento demográfico, na modificação de estrutura da população activa e na relativa aproximação a padrões de comportamento europeus”. Sublinho : “RECONHECER A MODERNIZAÇÃO (…) NAS DÉCADAS DE 60 e 70”.

Em relação à sugestão de trabalho sobre o Holocausto, esta, no documento, refere-se a outro tema do módulo 7, apesar de estar referido na mesma página do conteúdo 2.5, situação que se deve à organização das páginas, divididas em 3 tabelas, onde as duas primeiras, “conteúdos” e “conceitos”, estão relacionadas entre si e a terceira, com sugestões de trabalho, faz a listagem de todas as sugestões para todo o módulo. Um professor/investigador não ter reparado nisto e ter feito disto tema da sua comunicação é revelador da “competência” do mesmo em analisar documentos.

Pelo contrário, nesse documento, até surgem como sugestões de leitura, os discurso de Salazar.

Podemos discordar de certos conteúdos ou da ausência de outros, mas não existe no programa qualquer vestígio evidente do controle da educação pela "extrema-esquerda".

Por último, a infeliz referência ao “domínios marxista” da Bibliografia: de facto vem indicadas 3 obras de Hobsbawn, entre elas “A Era dos Extremos”, e 2 de Fernando Rosas, uma delas o “Dicionário de História do Estado Novo” por ele dirigido, mas com a colaboração de autores das mais variadas tendências, ao lado, aliás, dos 3 volumes do Dicionário de História de Portugal, relativos ao Estado Novo, coordenados por António Barreto e Filomena Mónica. Nas dezenas de sugestões de leitura também se incluem obras de “perigosos marxistas” como François Furet, José Mattoso, José Carlos Espada,Nuno Valério, José Hermano Saraiva, Joaquim Veríssimo Serrão, Braga da Cruz, A.H. de Oliveira Marques, Fátima Patriarca, António José Telo ou António Costa Pinto, entre outros.

Quanto muito, podemos criticar uma certa desactualização dessa bibliografia, mas não existe, na que é porposta, qualquer sinal de "domínio marxista".

Pela reacção do público de "direita" a esta comunicação, ficámos a "saber" que, na falta de um projecto económico para Portugal, alternativo ao mítico "modelo socialista", só têm para oferecer um "modelo económico" como o  do Estado Novo...sem Salazar (...eventualmente...sem ditadura!!), uma economia que "produz ricos", em vez de produzir riqueza, baseada na desigualdade na distribuição dessa riqueza, na perseguição aos sindicatos, na remessas da emigração provocada pela miséria das populações rurais, nos baixos salários e na negação de direitos sociais.

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