A leitura da decisão instrutória da “Operação Marquês”, ao contrário do
que uma opinião apressada, ignorante, tendenciosa e cega pode fazer crer, foi
uma autêntica lição sobre a forma como a grande corrupção em Portugal funciona
e como a nossa lei e a nossa justiça se
mostram incapazes de a combater eficazmente.
Mostra também que aquilo que qualquer cidadão comum, gozando de plenas
capacidades mentais, identifica como corrupção, está, muitas vezes, protegido
pela lei ou pela impossibilidade da prova.
Muito do que consideramos como eticamente reprovável, vulgo
“corrupção”, é “apenas” isso, eticamente reprovável, mas está protegido pela lei ou
pelo silêncio.
Aliás, a grande corrupção não é mais nem menos que a “ética do capitalismo”
e da “economia de mercado”.
Como diz a voz popular, uma grande fortuna esconde um grande crime.
Olhando para a história do capitalismo, este desenvolveu-se, ao longo
dos seus vários séculos de história, com base nos crimes mais hediondos: na
pirataria e no saque da propriedade e dos recursos alheios, no esclavagismo, no genocídio, no
crime organizado, na guerra, na destruição dos ecossistemas e, mais recentemente, no branqueamento de capitais,
na fuga aos impostos, nos negócios de armamento e da droga.
A dificuldade em seguir as movimentações de dinheiro , obtido pela
corrupção, agravou-se pela forma como funciona
a globalização e a circulação de capitais, e pela forma como o poder financeiro
está, há muito, contaminado pela origem duvidosa da maior parte dos seu capital
(branqueamento de capitais oriundo do crime organizado, da especulação
financeira , da fuga de impostos, do negócio ilegal de armamento, alimento do
terrorismo internacional e de regimes criminosos…), pela manutenção de paraísos
fiscais, não deixando de ser “surpreendente” que a própria União Europeia,
sempre pronta ao discurso “politicamente correcto” do “ataque à corrupção”,
permita a existência, no seu seio, desses mesmos paraísos fiscais, como
acontece, por exemplo, com a Holanda, cujos governos estão sempre prontos a
defender a retirada de direitos socias aos países pobres da UE e a defender a austeridade
dos outros, mas que é um país historicamente fundado nos lucros da pirataria,
do esclavagismo e do colonialismo, devendo , actualmente, a sua prosperidade
económica à forma como protege as grandes empresas de pagarem impostos no
território onde operam, prejudicando países como Portugal. Mas não é caso único no seio da UE.
Infelizmente, as “alternativas” históricas ao modelo capitalista
mostraram-se tão criminosas como este, nalguns casos ainda mais corruptas e
desumanas.
Uma outra vantagem deste processo é mostrar que, apesar de tudo, a
forma como a democracia enfrenta este tema da corrupção é sempre superior ao de
qualquer ditadura. Pelo menos os cidadãos sabem agora com que justiça contam e
podem agora exercer, com mais coerência, o seu direito de cidadania, que é o de
exigir alterações na lei, principalmente no que respeita à obtenção de provas,
na alteração ao escandaloso arrastamento dos processos e ao ignóbil principio da “prescrição” da prova.
Acima de tudo, o cidadão tem o dever de não pactuar com a corrupção,
que começa nos actos mais simples do dia a dia e termina no favorecimento de
fortunas ilícitas.
Muitos dirão, do alto da sua ignorância e da sua intolerância, que na
“ditadura” não havia corrupção.
“Não havia” porque não se podia falar nela, sob ameaça da censura ou de
prisão, para além dos corruptos serem protegidos pelo poder, com leis,
tribunais e uma polícia politica que obrigava ao silêncio
Mas a ditadura, qualquer uma, é a pior de todas as corrupções, que é a
usurpação do poder sobre um país ou um povo, em benefício de uma pessoa, de uma
elite, de uma religião, de uma ideologia, de uma classe ou de um partido.
Por isso, apesar de a decisão instrutória da “Operação Marquês” poder
não ser o que esperávamos, embora a história ainda não tenha terminado, ela
teve o condão de nos alertar sobre os “caminhos da corrupção”, para as
limitações da lei e da justiça no combate à grande corrupção, e para a necessidade de estarmos todos muito mais
atentos ao que se passa à nossa volta.
Agora é a vez da cidadania.