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Nunca, como nos últimos tempos, o
debate sobre o fascismo e a utilização desse termo, para interpretar a situação
actual, foi tão usado. Na verdade, a definição de “fascismo”, continua por
esclarecer e clarificar e é, desde longa data, tema de debates acalorados
envolvendo historiadores, politólogos (seja lá o que isto for) e sociólogos.
Nos anos 90 chegou-se a um
relativo consenso entre investigadores.
O Fascismo, na “pureza” das suas
características, "apenas existiu" na Itália de Mussolini.
Tanto o nazismo, à sua “direita”,
e o franquismo e o salazarismo (entre outros) à sua “esquerda” não encaixavam
nas características puras do fascismo teórico.
O nazismo, embora seguindo o
modelo de Mussolini, era, acima de tudo, “totalitário”, um conceito que, embora
defendido teoricamente pelo fascismo italiano, só se teria concretizado, sem
qualquer controle (da Igreja ou do rei, como aconteceu na Itália) na Alemanha
de Hitler.
Contudo, o conceito de
“totalitarismo” foi-se tornando pouco operativo, por um lado porque podia ser
igualmente aplicado a regimes diferentes, como ao estalinismo na União
Soviética ou à China do tempo da “revolução cultural”, por outro, porque o seu
termo se generalizou e vulgarizou como argumento da propaganda ocidental,
durante o período da Guerra Fria, contra os regimes do “socialismo real” do
leste europeu.
Por sua vez, regimes como o
salazarista e o franquista não se encaixavam totalmente na classificação e no
tipo de estrutura política e social do fascismo.
O regime salazarista era um
regime autoritário, antiliberal e antidemocrático, mas faltava-lhe o caracter
de movimento de massas do fascismo, embora recorresse a estas sempre que
necessitava do apoio da rua (lembram-se das célebres “manifestações espontâneas?”).
Apesar disso, pelo menos a partir
da Guerra Civil de Espanha até ao final 2ª Grande Guerra, principalmente até ao
momento em que se tornou evidente a derrota dos nazis, o salazarismo exacerbou
a retórica e o modelo do fascismo italiano (Salazar era grande admirador do
ditador italiano), altura em que se fundaram movimentos de características
fascistas, baseados em organizações do nazismo e do fascismo, como a Mocidade
Portuguesa e a Legião Portuguesa. Esta última organização foi mesmo a única
organização do Estado Novo que fez, abertamente, o elogio do nazismo.
A partir do final da guerra essas
organizações perderam as suas características fascistas, muito por influência
da Igreja e do Exército e, claro, para branquear a sua origem quando o
antifascismo saiu vitorioso da Guerra, e o regime alterou habilmente a sua
natureza dos anos 30/40 para poder sobreviver, tendo mesmo conseguido tornar-se
fundador da NATO.
A definição do que é o fascismo
enforma de duas dificuldades:
- se o resumirmos ao culto da
violência contra os inimigos, ao governo autoritário e ditatorial e à rejeição
da democracia e do liberalismo, teríamos de alargar o conceito a um universo
mais vasto, que incluiria os regimes do “comunismo real”, as ditaduras militares
de todas as cores e muitos dos regimes autoritários dos nossos dias (na
Turquia, na Rússia, no Irão, na Arábia Saudita, na Hungria… e o que dizer do
actual governo de Israel?);
- se desenvolvermos muito essas
características, apenas o Fascismo Italiano e um certo número de movimentos
nacionais, fixados nos anos 30, podem ser classificados como tal, com a
agravante que, nem mesmo o fascismo italiano, pela sua evolução e adaptação, se
encaixaria plenamente nessas características retóricas.
E quais são elas (resumidamente)?
Recorremos a Stanley Payne:
- “As negações fascistas”:
antiliberal, anticomunista, anticonservador;
- “Ideologia e objectivos” :
criação de um novo Estado nacionalista autoritário; organização de estruturas
económicas nacionais integradas, reguladas e “pluriclassistas”, numa palavra,
corporativista; a criação e a defesa de um Império que implicará uma relação de
força com as outras nações; um novo credo idealista e voluntarista, impondo um
novo tipo de cultura secular, moderna e "autodeterminada";
- “Estilo e Organização” :
Importância estética dos símbolos, dos mitos e da coreografia politica;
mobilização das massas, militarizando as relações sociais e da vida politica,
através de organizações de massas; uso da violência contra os “inimigos”; dominação
masculina; exaltação da juventude, fomentando o conflito de gerações, pelo
menos na sua fase inicial de transformação politica; tendência para uma
liderança pessoal, autoritária e carismática, mesmo recorrendo inicialmente à
via eleitoral.
Conseguir o pleno destas
características, só mesmo no Fascismo italiano de Mussolini.
Mas, para ser classificado como
fascismo não é necessário fazer o pleno, basta a existência da maioria dessas
características.
Assim, para Stanley Payne o
fascismo, nos anos 30/40 do século XX, é uma das famílias daquilo que ele
classifica como as “três caras do nacionalismo autoritário”, sendo as outras
duas a “direita radical” e a “direita conservadora”.
Como “fascistas” classifica,
entre outras, o Partido nacional-socialista alemão, o Partido Nacional Fascista
Italiano, a Falange em Espanha e o Nacional-sindicalismo português.
Na “Direita radical” coloca,
entre outros, a figura de Papen na Alemanha, os Integralistas em Portugal e os
Carlistas em Espanha.
Na “direita conservadora” cabem,
entre outros, o presidente Hindenburg na Alemanha, o governo de Vichy em França, o presidente
Horthy da Hungria, Pilsudski na Polónia, a União Nacional e Salazar em Portugal
e a CEDA em Espanha.
Recorde-se que, em Portugal, a
maior parte dos nacional-sindicalistas e
dos integristas, mais ou menos forçados, mais ou menos voluntariamente,
acabaram por integrar o regime salazarista, sendo, por outro lado,
significativo o caso de Rolão Preto, líder dos nacional-sindicalistas, que,
depois de preso, veio a apoiar a candidatura de Humberto Delgado.
O caso espanhol também é
peculiar. Franco conseguiu fundir as várias organizações acima citadas, durante
a Guerra Civil, numa falange mais abrangente, que se tornou o partido único do
regime e que, na transição para a democracia, se integrou, quase todo, no
actual Partido Popular, ganhando novo alento no recém criado Vox.
O caso português tem sido muito
estudado por vários historiadores, destacando os trabalhos, divergentes nalguns
pontos, de Fernando Rosas, Manuel Loff, António Costa Pinto e de Irene Flunser
Pimentel.
Contra a corrente vai a tese de
Jorge Pais de Sousa, que defende o salazarismo como um “fascismo de cátedra”,
ou seja, um fascismo sem movimento de massas.
De qualquer modo, toda a
problemática referida coloca o fascismo como uma situação histórica
“irrepetível”.
Não é essa a tese de Umberto Eco,
no seu ensaio de 1997, mas mais actual do que nunca, “como reconhecer o
fascismo”, que mostra até que ponto o fascismo “ainda anda por aí”.
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Nos anos 90, depois da derrota do
comunismo real, e com o fim da Guerra Fria, parecia que a democracia e a
liberdade iam vencer por todo o mundo.
Recorde-se que na década anterior
se tinham desmoronado as ditaduras militares na américa latina e o apartheid na
África do Sul.
Era o “fim da história” de
Fukuyama.
Também por essa altura
estudava-se afincadamente o fascismo, chegando a maior parte dos investigadores
à conclusão que este regime estava datado histórica e geograficamente.
O fascismo puro só tinha existido
em Itália.
Estabeleciam-se as diferenças
entre os vários regimes que até aí tinham sido “misturados” sob a designação de
“fascistas”: o Estado Novo português, o governo de Vichy em França e o
franquismo espanhol, entre outros, não encaixavam no modelo fascista dos investigadores.
Mesmo o nazismo era uma
excrescência totalitária do fascismo.
Não deixa de ser, contudo,
curioso, que, encontrando-se tantas diferenças entre esses regimes, nunca
ninguém tenha feito o mesmo exercício para distinguir os regimes e os
movimentos comunistas, quer do ponto de vista cronológico, quer do ponto de
vista sincrónico.
É que, na realidade, existem
tantas diferenças, em termos práticos, em termos de violência ou em termos
económicos e sociais, entre o Estado Novo português, o nazismo alemão ou o
fascismo italiano, como entre a União Soviética de Lenin, de Stalin ou Gorbachev,
ou entre Cuba e a Coreia do Norte, ou entre o chamado eurocomunismo e o Partido
Comunista Português…
Mas a preocupação em fazer esta
distinção não terá motivado da mesma maneira os investigadores dessa altura.
Era mais importante retirar
certos regimes e certos partidos da família fascista, do que fazer o mesmo
exercício em relação aos regimes ditos comunistas.
Não questiono a seriedade desses
estudos. Apenas noto a diferença de prioridades.
Claro que pode haver uma situação
que explica essas opções.
A maior parte dos regimes que se
inspiraram, com maior ou menos convicção, no modelo do fascismo italiano,
raramente se designaram ou classificaram como fascistas, ao contrário do que
aconteceu com os regimes comunistas ou com os vários movimentos comunistas,
mesmo quando se combatiam entre si.
A maior parte dos regimes
autoritários de direita e os futuros partidos de extrema-direita,
principalmente depois da 2ª Guerra, não se gabavam, pelo menos publicamente, de
admirarem Mussolini ou Hitler, a não ser em casos muito marginais.
Pelo contrário, apesar de todas
as suas diferenças, tão grandes ou maiores do que as que existiram ou existem
entre regimes e partidos da direita autoritária e antiliberal, os regimes do
“comunismo real” e os partidos assim designados, todos invocavam a mesma origem
comum, mesmo que aplicada ou interpretada de forma diferente, como mínimo
denominador comum, em Engels, Marx e Lenine.
Nos anos 90 o fascismo era
considerado assunto histórico encerrado e irrepetível, ao contrário do
“comunismo real” que continuou a sobreviver até hoje na China, no Vietname, na
Coreia do Norte e em Cuba, e em Partidos Comunistas que continuam a ter um peso
significativo em muitos países democráticos.
Contudo, houve um autor que remou
contra a maré.
Esse autor foi Umberto Eco que em
1997 publicou um ensaio intitulado “O fascismo eterno”, publicado e traduzido
em Portugal com o título “Como reconhecer o fascismo”.
Para Umberto Eco, o fascismo não
estava morto e enterrado, ao contrário do nazismo.
Começava por desmentir que o
fascismo, ao contrário do nazismo, tivesse uma filosofia própria, mas apenas
“retórica”.
Demonstrou que o fascismo
italiano não era fácil de classificar ou de caracterizar, pois, ao contrário do
modelo coerente em que muito o tentavam encaixar, era um movimento pragmático,
muitas vezes contraditório e incoerente.
Ora, essa capacidade camaleónica
do fascismo, permitiu a sua sobrevivência e a capacidade de reaparecer em
qualquer outro lado ou época sob outras “vestes”.
A partir destas premissas,
Umberto Eco identifica um conjunto de características do “novo fascismo”, que
ele apelida de “Ur-fascismo”, avisando, contudo, que essas “características não
poderão ser ordenadas num único sistema: muitas contradizem-se reciprocamente,
e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas basta que esteja
presente uma delas para fazer coagular uma nebulosa fascista”.
Hoje, esse ensaio, com mais de
vinte anos, veio revelar-se mais actual do que nunca, quando assistimos ao
renascimento de regimes, partidos e retóricas de extrema direita, pondo em
causa a existência das democracias liberais que se julgavam eternas e em expansão
naquela década.
Aliás, o próprio termo de
“democracia liberal” é defensivo, como se a democracia não fosse liberal.
O que é um facto é que a maioria
desses movimentos substituíram a rua e os golpes militares pela campanha em
redes socias e pela participação democrática e, onde chegam ao poder, como na
Hungria, por exemplo, criaram um novo conceito, o de “democracia ileberal”, ou
seja, manipulam as regras democráticas, mantendo a fachada de actos eleitorais
para se legitimarem e legitimarem o controle sobre a justiça e a comunicação
social.
Vemos isso também na Turquia, na Rússia,
na Índia, nas Filipinas…
Quais as são características do
“Ur-fascismo” apontadas por Umberto Eco?
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Registámos as características
históricas do fascismo e a forma como a investigação histórica dos anos 90
caminhou no sentido de demonstrar que o fascismo estava morto e enterrado.
Referimos a excepção de Umberto
Eco que, remando conta a maré dominante, explicou num ensaio de 1997, que o
fascismo podia ressurgir com novas roupagens.
Tentamos agora explicar quais
eram as características, apontadas por Eco, desse “novo fascismo”, que ele
designa com “Ur-fascismo”.
Depois de analisar o exemplo do
fascismo italiano, mostra que o fascismo não era coerente do ponto de vista
ideológica, “não era uma ideologia monolítica, mas uma colagem de diversas
ideias políticas e filosóficas, uma amalgama de contradições”, ao contrário do
nazismo.
Por isso considerava que, se o
nazismo não iria reaparecer “como movimento que envolva uma nação inteira”,
pelo contrário o fascismo mantinha condições para renascer sob novas roupagens.
Escreveu Eco que houve “um único
nazismo”, mas, em” contrapartida, “pode-se brincar ao fascismo de muitos
modos”, porque o “termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar
de um regime fascista um ou vários aspectos, e poder-se-á reconhecê-lo com fascismo”.
Apesar da confusão e da
dificuldade em definir fascismo, é “possível indicar uma lista de
características típicas do que poderei chamar o “Ur-fascismo” ou o “fascismo
eterno”. Estas características não poderão ser ordenadas num único sistema:
muitas contradizem-se reciprocamente, e são típicas de outras formas de
despotismo ou fanatismo. Mas basta que esteja presente uma delas para fazer
coagular uma nebulosa fascista”.
E quais são essas características
apresentadas no ensaio de Eco?
Ei-las, de forma resumida:
-1. O culto da tradição, embora
seja “mais velho do que o fascismo”;
-2. A rejeição do modernismo e do
mundo moderno, que também se pode referir como “irracionalismo”.
-3. O culto da “acção pela
acção”: “A acção é bela em si, e portanto, tem de ser realizada antes de e sem
qualquer reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso a cultura é
suspeita na medida em que se identifica com comportamentos críticos”, atitude
identificada com o “uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”,
“Convencidos”, “Snobs radiais”, “As Universidade são covis de comunistas”(…)”.
-4. O desacordo “é traição”.
-5. O Medo da diferença. “O
Ur-Fascismo é (…) racista por definição”.
-6. A exploração da “frustração
individual ou social”, apelando “às classes médias frustradas, sentindo
mal-estar por qualquer crise económica ou humilhação política, assustadas pela
pressão dos grupos sociais subalternos”.
-7. O nacionalismo, com apelo à
xenofobia e que procura inimigos externos e internos que “conspiram” contra a
identidade nacional.
- 8 . A defesa face a um inimigo
que humilha o “povo” pela “riqueza ostentada”.
- 9 . A critica ao pacifismo.
- 10 . O elitismo de massas e o
“desprezo pelos fracos”. Quem se identifica com o “chefe” ou com “o partido” é
o “melhor povo do mundo” e os que pertencem ao “movimento” são “os melhores
cidadãos” (como os “portugueses de bem” do Chega).
- 11 . O culto do “herói”, “todos
são educados para se tornarem heróis”.
-12 . o “machismo”, que implica o
“desprezo pelas mulheres” e a “condenação” da homossexualidade.
- 13 . O “populismo qualitativo”,
ou seja, “os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos” e é o líder que
interpreta a vontade do povo. Já então Eco avisava que no “nosso futuro
perfila-se um populismo qualitativo na Tv ou na internet, em que a resposta
emotiva de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceite como
a “voz do povo”. Devido ao seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo tem de
opor-se aos “putrefactos” governos parlamentares”. E conclui: “sempre que um político
lança dúvidas sobre a legitimidade do parlamento por já não representar “a voz
do povo”, já podemos dizer que cheira a Ur-fascismo”.
- 14 . “O Ur-Fascismo fala a
“neolíngua”, um termo inventado por George Orwell para o seu romance “1984”,
uma crítica ao stalinismo então dominante entre os movimentos comunistas, mas
que, segundo Eco, tem elementos comuns “a formas diferentes de ditaduras”,
referindo o léxico pobre, de frase feita, com fins propagandísticos e de doutrinação,
que procura alterar o significado da palavra com o objectivo de “limitar os
instrumentos para o raciocínio complexo e crítico”, avisando para a necessidade
de estarmos preparados “para identificar outras formas de neolíngua, mesmo
quando toma a forma inocente de um talk- show popular”.
Conclui Eco que o “Ur-fascismo
ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes . O nosso dever é desmascara-lo
e apontar o dedo a cada uma das suas novas formas –diariamente, em todo o
mundo”.
Aquilo que parecia então uma mera
divagação intelectual, está hoje mais actual do que muito.
Muitos dos 14 pontos apontados
por Eco estão aí mais do que presentes no discurso populista de líderes
políticos e movimentos de várias vestes e cores, da Venezuela ao Brasil e à
Argentina, da Coreia do Norte à Hungria, da Rússia à Ucrânia, da Turquia às
Filipinas, da Grã-Bretanha aos Estados Unidos, da França à Itália, de Israel
aos Estados do fundamentalismo Islâmicos (Irão, Afeganistão, Arábia Saudita)….
As redes sociais, que substituem
a rua como lugar de manifestação da violência e do ódio de tipo fascista, estão
cheias de um discurso acima identificado por Eco como o “Ur-fascismo” dos
nossos dias :
-o apelo irracional ao ódio
contra quem não pensa como nós;
- o discurso saudosista do
“antigamente [leia-se por cá, no tempo de Salazar] é que era bom”;
- a diabolização e
ridicularização das ditas questões fracturantes [a critica à modernidade];
- a disseminação das fake
news [a mentira várias vezes repetida
para se tornar “verdade”];
- a criação de um clima de medo [exagerando,
pela repetição e pelo destaque, à existência de uma sociedade “dominada pelo
crime”];
-a desvalorização do Estado de Direito, com
apelos à judicialização da sociedade, renegando a presunção de inocência ou
fazendo dos tribunais espectáculo, recorrendo à divulgação de processos em
segredo de justiça, conduzindo à defesa de uma justiça popular e a uma justiça
feita pelas próprias mãos, atitude potenciada pelos títulos de tablóides;
- a desvalorização de um
pensamento crítico, atacando os “intelectuais”, o conhecimento cientifico
(evidente na negação da alteração climática), o papel das universidades
“tomadas pela esquerda”;
- o desprezo pelos fracos, que
culpa pela sua fraqueza, “vivendo dos subsídios”, apenas tolerados como alvo de
campanhas de caridade para limpeza de consciências;
- o nacionalismo exacerbado,
cercado de “inimigos” [os “venezuelanos”, os “comunistas”, os “islâmicos”, os
“terroristas”, os “emigrantes”, os “homossexuais”…];
- a superioridade “democrática”
das redes sociais, a “verdadeira” “voz do povo”, como contraponto da democracia
“corrupta” e “putrefacta” dos regimes parlamentares e dos políticos;
- etc., etc., etc….
4
Uma actualização
fundamentada do perigo de um “novo
fascismo” está presente na recente obra de Madelene Albright, “Fascismo um
Alerta”.
Historiando a origem histórica do
fascismo e mostrando o que este teve de comum com o comunismo real (na sua
versão stalinista) no desdém pela democracia, encontra diferenças assinaláveis
entre as duas ideologias.
Faz igualmente o historial do
MacCarthismo e da forma como, durante a Guerra Fria, os regimes democráticos
pactuaram com as mais criminosas ditaduras, mostrando a forma como, no seio de
regimes democráticos sólidos, o perigo das pulsões fascistas está presente e se
pode transformar a democracia numa “ditadura da democracia”.
Faz um historial recente da
presença dessas pulsões fascistas em regimes actuais, que , mesmo quando de
origem ideológica aparentemente diferente, transportam em si o vírus do
fascismo: o recurso à mentira, o desdém pela liberdade e pela democracia, o carisma
do líder, o recurso ou apelo ao genocídio, o combate à diferença e o
nacionalismo exacerbado.
Percorre a história recente do
chavismo venezuelano, do regime turco de Erdogan, da ascensão de Putin, da
“democracia iliberal “ de Órban na Hungria, da liderança omnipresente da
dinastia Kim na Coreia do Norte, entre muitas outras referências a outros regimes
“proto fascistas” como o de Sissi no Egipto, o de Kaczynski na Polónia, o de
Zeman na República Checa, o de Duterte nas Filipinas (só não falando em
Bolsonaro porque ainda não era notícia à data da escrita do livro), chegando à
principal preocupação para o seu alerta contra o fascismo, a situação que se vivia
( e se volta a viver) nos Estados Unidos com a vitória de Trump.
Claro que nenhum desses regimes é
classificado por Albright com “fascista” ( apenas classifica como tal o da
Coreia do Norte), mas todos transportam em si a semente de um novo fascismo,
principalmente pela forma como banalizam um determinado discurso e uma
determinada atitude que justifique as pulsões “fascistas”.
Em muitos desses governos e
noutros movimentos de tipo populista por esse mundo fora, e citando Robert
Paxton, da Universidade de Columbia, “ouvimos ecos de temas fascistas
clássicos: medos da decadência e do declínio; afirmação de uma identidade
nacional e cultural; uma ameaça à identidade nacional e à boa ordem social por
parte de estrangeiros não assimiláveis; e a necessidade de maior autoridade
para liderar com esses problemas” ( pág.222).
Em comum, Albright encontra
nalgumas das atitudes daqueles governos o caminho para um novo fascismo:
“Rapidamente o Governo que
silencia um meio de comunicação acha mais fácil silenciar um segundo. O
parlamento que ilegaliza um partido político passa a ter um precedente para
banir o seguinte. A maioria que priva determinada minoria dos seus direitos não
para por aí. A força de segurança que espanca manifestantes e fica impune não
hesita em voltar a fazê-lo” (pág.278).
Albright recorda-nos que, como
aconteceu ao longo da história, os fascistas podem chegar ao poder por via
eleitoral. Hoje em dia, aliás, não se atrevem a fazê-lo de outro modo.
Geralmente chegados ao poder, vão dando passo a passo a estocada final na
democracia, sendo o primeiro passo minarem “a autoridade de centros de poder
que compitam com eles, incluindo o Parlamento”.
Deve-se a Albright uma definição
simples e concisa do que é um fascista: “alguém que reclama falar em nome de
uma nação ou de um grupo, que não se preocupa nada com os direitos dos outros e
que está disposto a recorrer à violência e a quaisquer outros meios necessários
para alcançar os seus objectivos” (pág.296).
Albright, que iniciou o seu livro
com um conjunto de perguntas feitas aos seus alunos, cujas respostas esclarecem
o que foi o fascismo em termos históricos, conclui a sua obra reformulando as
perguntas, para responder onde podemos encontrar, nos líderes políticos de
hoje, os novos arautos no novo fascismo:
“Vêm ao encontro dos nosso
preconceitos, sugerindo que tratemos as pessoas de outra etnia, raça, credo ou
partido como se não merecessem dignidade e respeito?;
“Querem que alimentemos a ira
contra quem acreditamos que nos fez mal, esfreguemos os ressentimentos até
ficarem em carne viva e ponhamos os olhos na vingança?;
“Encorajam-nos a sentirmos
desprezo pelas instituições que nos governam e pelo processo eleitoral?;
“Procuram destruir a nossa fé em
elementos essências à democracia, como uma imprensa independente e uma
magistratura profissional?;
“Exploram os símbolos do
patriotismo – a bandeira, o juramento – num esforço consciente de nos virar uns contra outros?;
“Se forem derrotados nas urnas,
aceitam o veredicto ou insistem sem provas de que foram eles os vencedores?;
“Fazem mais do que pedir os
nossos votos e gabam-se da sua capacidade para resolver todos os problemas,
acalmar todas as ansiedades e satisfazer todos os desejos?;
“Solicitam os nossos aplausos
falando despreocupadamente e com entusiasmo machista sobre o uso da violência
para aniquilar os inimigos?;
“Repetem a atitude de Mussolini:
“A multidão não precisa de saber” , tudo o que tem a fazer é acreditar e
“aceder a ser moldada”?” (pp.304-305).
Quem responder positivamente a
estas questões trás consigo e alimenta a semente do novo fascismo.
Como se pode concluir do que nós
escrevemos e citámos, não é fácil definir, nem ontem nem hoje, o que é o
fascismo.
Nem o fascismo dos anos 30 é
repetível na nossa época.
Mas o desprezo pela democracia,
pela liberdade, pelo outro, pela verdade, pelas instituições sociais e
democráticas, pelos direitos humanos e sociais, é uma carcteristica comum à
extrema-direita populista, seja a dos anos 30, seja a actual, mesmo quando,
como na Venezuela, se veste de roupagens
pseudo-esquerdistas.
Ao mesmo tempo o apelo à
violência e ao ódio, físico ou verbal, a atitudes irracionais, ao que de pior
existe no ser humano, é comum a tudo aquilo que, legitimamente, podemos
classificar de fascismo.
Não vamos ver milícias nas ruas
perseguindo judeus, negros, comunistas, socialistas ou democratas (ou será que
vamos? Bolsonaro prometeu algo parecido no Brasil...). Hoje as redes socias
prestam bem esse serviço.
Não vamos ver a destruição total
do formalismo democrático, pois podem bem conciliar o acto eleitoral em
sociedades manipuladas por uma comunicação social controlada pelo poder
financeiro e político (Rússia, Turquia, Hungria, Argentina...).
Ao contrário dos anos 30, em que
economicamente o que era viável aos poderes que financiaram o fascismo contra o
socialismo, a democracia e os direitos sociais, era a estatização da economia,
hoje esses mesmo poderes apostam no neoliberalismo que lhes permite escapar ao
fisco, às regras ambientais, à legislação e os direitos laborais e ao controle
democrático da sua acção pelos parlamentos.
Este “novo fascismo”, ou
“ur-fascismo” ou “populismo”, não precisa hoje de recorrer ao aparato cénico
propagandístico e espectacular dos anos 30. Basta manter-nos alienados,
agarrados às redes socias e aos talk shows.
Ao contrário da esquerda, a
extrema direita populista conseguiu adaptar-se aos novos tempos e renascer das
cinzas, voltando a colocar o mundo á beira do abismo e da barbárie.
Bibliografia:
ALBRIGHT, Madeleine, Fascismo –
um alerta, ed. Clube do autor, 2018;
ECO, Umberto, Como reconhecer o
fascismo. Da diferença entre migrações e emigrações, ed. Relógio d’Àgua, 2017
(texto original de 1997, numa tradução de grande qualidade de José Colaço
Barreiros);
PAYNE, Stanley G., El fascismo,
Alianza Editorial , Madrid 1996 (1ª edição em 1980);
PINTO, António Costa, O
Salazarismo e o Fascismo Europeu, ed. Estampa;
Sem comentários:
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