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sexta-feira, 8 de julho de 2022

"Desmontando" o "Nacional-Salazarismo"

                                

...ou ...Uma História do “Estado Novo” que não é “mais uma História do Estado Novo”.

Editado em Novembro de 2021, já em 2ª edição datada de Fevereiro de 2022, aí está o primeiro volume da nova obra histórica de Fernando Pereira Marques, “Quem Manda?...” Nacional-salazarismo e Estado Novo, editada pela Gradiva.

Não é “mais” uma História do “Estado Novo”, pois o livro faz uma abordagem inovadora sobre esse período da nossa História.

Este estudo analisa a consolidação e estruturação do regime salazarista em três dimensões, a ideologia doutrinária e programática, o sistema político do regime, e a forma como essas duas primeiras dimensões incidem sobre as relações sociais e a na vivência quotidiana das pessoas, incindindo o primeiro volume, agora editado, sobre aquelas duas primeiras dimensões.

Uma das abordagens originais desta obra é a utilização do conceito “nacional-salazarismo” como alternativa à banalização da classificação do regime como “fascista”, conceito aquele que permite ultrapassar os dois “extremos” do debate sobre o regime, “fascismo” versus “ditadura conservadora”.

De facto, existe uma urgência, no debate politico actual, em clarificar o conceito de  “fascismo”, tendo em conta o abuso propagandístico dessa designação.

No caso português, onde tivemos um regime de meio-século como o foi o “Estado Novo”, mais urgente se torna analisá-lo fugindo ao uso abusivo do conceito de “fascismo”.

O mérito do conceito de “nacional-salazarismo” , explicado pelo autor nesta obra, é o de ultrapassar os becos sem saída e os abusos na utilização desse conceito para analisar o caso português.

O livro agora editado mostra como o regime se alicerçou à volta de um projecto de poder pessoal, apoiado numa “camarilha” restrita, indo, é certo, buscar influência aos primórdios do fascismo, mas revelando uma construção original, baseada na formação conservadora, “anti-revolucionária”, “anti-política” e pragmática do “Chefe”, projecto que se resume na frase que serve de mote ao título da obra: “Quem Vive? Portugal, Portugal, Portugal! Quem Manda? Salazar, Salazar, Salazar!”.

Este mote é um exemplo propagandístico, usado pelo regime, para acentuar a combinação entre o nacionalismo e o poder pessoal, o “tal” “nacional-salazarismo”.

Uma das dimensões mais originais, que distingue o “nacional-salazarismo” das ditaduras fascistas e extremistas dos anos 30/40 é a aversão à política, contrastando com “Mussolini, chefe de partido e de milícia, exibicionista e caricatural, berrando e gesticulando numa espalhafatosa farda; ou com Hitler (...)- que subiria ao poder por via eleitoral- agitador de rua, orador de cervejarias, militarista, teatral, que cultivava o exagero Histriónico e a encenação, e sabia habilmente explorar a vulnerabilidade das massas fanatizadas (…); ou até de Pétain, velho militar envolto na aura de chefe de guerra” (Página 35).

Uma das características mais marcantes do modelo “nacional-salazarista” é a aversão à “política”, aversão que já o acompanhava na sua juventude, mas, como refere o autor, o que o ditador “repudiava, na realidade, era a democracia, as ideias de pluralismo e de pluralidade, a aceitação dos conflitos como inerentes à complexidade das sociedades abertas e que deveriam ser geridas por instituições legitimadas pelos cidadãos”.

O sentimento “anti-politico” de Salazar é uma das marcas mais fortes do discurso “nacional-salazarista” que ainda hoje influencia a “memória colectiva portuguesa” e “a mentalidade de gerações”, alimentando “uma desconfiança ainda hoje latente quando não manifesta hostilidade, a essa categoria “nefasta”, “suspeita”, “viciosa”, “corrupta”: os “políticos”” (pág.37).

Essa aversão pelo “político”  justifica o desejo manifestado pelo ditador, em entrevista, de ser “um primeiro-ministro de um rei absoluto”.

Quanto muito, Salazar via a política como um “mal necessário”, considerando que “fazer política” não era governar, aquilo que se pode chamar da doutrina da “imobilização política” ou o “viver habitualmente”, ou seja “do ponto de vista doutrinário, o nacional-salazarismo era um pensamento de “imobilização” social através (…) da “disciplina”, da “unidade”, da “coesão”, da “homogeneidade” e da “concentração” de tipo fascizante e totalitário; nacionalista quanto à visão do mundo e aos valores, e pragmático quanto à forma de durar e governar” (pág.51).

A esta “aversão pela política” que permanece na nossa memória colectiva, como herança silenciosa do “nacional-salazarismo”, junta-se o mito, muito enraizado por aí em certos círculos, segundo o qual “não havia corrupção” no salazarismo, “esquecendo-se” instituições como a “censura”, as “leis” construídas à medida e os tribunais sem independência, que protegiam a “camarilha” do epiteto da corrupção de que se alimentavam e beneficiavam pela proximidade com o ditador.

A 2º parte da obra de Pereira Marques dedica-se à análise do sistema político “nacional-salazarista”, a sua Constituição corporativa, o funcionamento do semipresidencialismo e os organismos “ideológico-militarizados” que o sustentavam, como o “não-partido” União Nacional (UN), um “mal necessário”.

Uma das particularidades do sistema partidário salazarista, dominado pela UN, que o tornam “um caso de estudo é que, ao contrário da generalidade dos sistemas autoritários/totalitários, o partido destinado a suportar o regime era produzido por este, e não o inverso”, pois, com “efeito, a UN foi desde o início construído a partir do Governo ou, mais precisamente, do Ministério do Interior e da Presidência do Conselho” (pág.69).

Analisa-se também a relação do ditador com os governos por si presididos, governos personalizados concentrando o poder no próprio Salazar, sendo esta uma das características do regime, citando-se, a propósito o próprio Salazar, numa entrevista a António Ferro, onde o ditador clarifica “a sua concepção de governo do ponto de vista funcional” : “A orientação, a responsabilidade política do Governo diz respeito a duas pessoas – ao Chefe do Governo e ao ministro do Interior. Os restantes ministros têm preocupações técnicas demasiado importantes para serem obrigados a pensar ainda no problema político que devemos tentar reduzir à sua expressão mais simples se queremos mudar de vida” (pág. 136).

O próprio ditador estabeleceu uma hierarquia em  “matéria de governação”, distinguindo a “alta política”, da “média política” e da “baixa política”, segundo o registo de uma reunião do Conselho de Ministros, realizada em 1945 e anotada por Marcelo Caetano: a “Alta política” “compreendia a política externa, a “constitucional”, a “imperial” e a económico-social; a “Média Política” (…) abarcava a “influência externa na estrutura política portuguesa”, o sistema eleitoral, a censura à imprensa, a polícia política, a situação económica e a “política social”; e a “Baixa política” (…) reportava ao “estado da opinião pública”, “intrigas”, “agitação militar”, “vícios da organização corporativa”, etc.” (pág.137).

O relacionamento do ditador com os diversos ministros e as diversas pastas reflectia essa “classificação”, encarando o ditador o Conselho de Ministros “como um pequeno órgão colegial, um “pequeno parlamento”, que lhe bastava e era necessário aceitar e tolerar” (pág.137), daí a quase ausência de reuniões do concelho de ministros, a governação baseada em “conversas bilaterais” com os ministros, governando preferencialmente por decreto.

Um outro tópico que merece uma análise detalhada é o das “encenações eleitorais no funcionamento do sistema”, no capítulo terceiro do livro.

Distinguem-se dois momentos, uma primeira fase até 1945, o das “eleições” sem oposição, uma segunda fase após aquela data “com oposição”.

A principal característica do regime neste campo era o de impedir a livre concorrência entre partidos. O máximo que era permitido, principalmente na segunda fase, era uma concorrência entre “associações apolíticas” tendo por base o conceito de “democracia orgânica” segundo o qual “o Estado era a “Nação socialmente organizada”, onde o “partido” único, a União Nacional era “uma espécie de voluntariado da política sem interferência “na governação pública e [que] não aspira ao recrutamento do funcionalismo ou do pessoal político” (citação do autor na pág. 157).

Neste capítulo o autor analisa as características de cada um dos “actos eleitorais” organizados pelo regime, onde destaca o recurso à fraude, à falsificação e  à manipulação como forma de perpetuar a UN, acabando invariavelmente com a prisão dos opositores após o período eleitoral.

No último capítulo do livro abordam-se as características da vida parlamentar, ou, mais correctamente, o funcionamento do “não-parlamento”, sempre dominado pelo “partido” único e no qual, quem pretendesse usar o parlamento como palco de contestação ou crítica, ou levasse a sério esse espaço como tribuna de afirmação política, corria o risco de ostracização, levando a dissidências como a de Henrique Galvão, caso que é analisado em pormenor nesta parte da obra.

Destacamos ainda a publicação de um anexo com um exaustivo levantamento dos “detentores ou ex-detentores” de cargos políticos e públicos, durante o Estado Novo, uma espécie de lista dos que “mandavam naquilo tudo”, a tal “camarilha” que beneficiava da proximidade e da intimidade com o ditador. 

Enquanto aguardamos pela continuação desta bem documentada análise do Estado Novo, salientamos o facto de muita da documentação usada, de uma grande riqueza de conteúdo, estar disponível e publicada, embora seja muitas vezes ignorada por outros autores, documentação que Pereira Marques usa de forma certeira para explicar situações e conceitos complexos, e que tornam este estudo de leitura agradável.

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