...ou ...Uma História do “Estado Novo” que não é “mais uma História do
Estado Novo”.
Editado em Novembro de 2021, já
em 2ª edição datada de Fevereiro de 2022, aí está o primeiro volume da nova
obra histórica de Fernando Pereira Marques, “Quem Manda?...”
Nacional-salazarismo e Estado Novo, editada pela Gradiva.
Não é “mais” uma História do
“Estado Novo”, pois o livro faz uma abordagem inovadora sobre esse período da
nossa História.
Este estudo analisa a
consolidação e estruturação do regime salazarista em três dimensões, a
ideologia doutrinária e programática, o sistema político do regime, e a forma
como essas duas primeiras dimensões incidem sobre as relações sociais e a na vivência
quotidiana das pessoas, incindindo o primeiro volume, agora editado, sobre
aquelas duas primeiras dimensões.
Uma das abordagens originais
desta obra é a utilização do conceito “nacional-salazarismo” como alternativa à
banalização da classificação do regime como “fascista”, conceito aquele que
permite ultrapassar os dois “extremos” do debate sobre o regime, “fascismo”
versus “ditadura conservadora”.
De facto, existe uma urgência, no
debate politico actual, em clarificar o conceito de “fascismo”, tendo em conta o abuso
propagandístico dessa designação.
No caso português, onde tivemos
um regime de meio-século como o foi o “Estado Novo”, mais urgente se torna
analisá-lo fugindo ao uso abusivo do conceito de “fascismo”.
O mérito do conceito de
“nacional-salazarismo” , explicado pelo autor nesta obra, é o de ultrapassar os
becos sem saída e os abusos na utilização desse conceito para analisar o caso
português.
O livro agora editado mostra como
o regime se alicerçou à volta de um projecto de poder pessoal, apoiado numa
“camarilha” restrita, indo, é certo, buscar influência aos primórdios do
fascismo, mas revelando uma construção original, baseada na formação
conservadora, “anti-revolucionária”, “anti-política” e pragmática do “Chefe”,
projecto que se resume na frase que serve de mote ao título da obra: “Quem
Vive? Portugal, Portugal, Portugal! Quem Manda? Salazar, Salazar, Salazar!”.
Este mote é um exemplo
propagandístico, usado pelo regime, para acentuar a combinação entre o
nacionalismo e o poder pessoal, o “tal” “nacional-salazarismo”.
Uma das dimensões mais originais,
que distingue o “nacional-salazarismo” das ditaduras fascistas e extremistas
dos anos 30/40 é a aversão à política, contrastando com “Mussolini, chefe de
partido e de milícia, exibicionista e caricatural, berrando e gesticulando numa
espalhafatosa farda; ou com Hitler (...)- que subiria ao poder por via
eleitoral- agitador de rua, orador de cervejarias, militarista, teatral, que
cultivava o exagero Histriónico e a encenação, e sabia habilmente explorar a
vulnerabilidade das massas fanatizadas (…); ou até de Pétain, velho militar
envolto na aura de chefe de guerra” (Página 35).
Uma das características mais
marcantes do modelo “nacional-salazarista” é a aversão à “política”, aversão
que já o acompanhava na sua juventude, mas, como refere o autor, o que o
ditador “repudiava, na realidade, era a democracia, as ideias de pluralismo e
de pluralidade, a aceitação dos conflitos como inerentes à complexidade das
sociedades abertas e que deveriam ser geridas por instituições legitimadas
pelos cidadãos”.
O sentimento “anti-politico” de
Salazar é uma das marcas mais fortes do discurso “nacional-salazarista” que ainda
hoje influencia a “memória colectiva portuguesa” e “a mentalidade de gerações”,
alimentando “uma desconfiança ainda hoje latente quando não manifesta
hostilidade, a essa categoria “nefasta”, “suspeita”, “viciosa”, “corrupta”: os
“políticos”” (pág.37).
Essa aversão pelo “político” justifica o desejo manifestado pelo ditador,
em entrevista, de ser “um primeiro-ministro de um rei absoluto”.
Quanto muito, Salazar via a
política como um “mal necessário”, considerando que “fazer política” não era
governar, aquilo que se pode chamar da doutrina da “imobilização política” ou o
“viver habitualmente”, ou seja “do ponto de vista doutrinário, o
nacional-salazarismo era um pensamento de “imobilização” social através (…) da
“disciplina”, da “unidade”, da “coesão”, da “homogeneidade” e da “concentração”
de tipo fascizante e totalitário; nacionalista quanto à visão do mundo e aos
valores, e pragmático quanto à forma de durar e governar” (pág.51).
A esta “aversão pela política”
que permanece na nossa memória colectiva, como herança silenciosa do “nacional-salazarismo”,
junta-se o mito, muito enraizado por aí em certos círculos, segundo o qual “não
havia corrupção” no salazarismo, “esquecendo-se” instituições como a “censura”,
as “leis” construídas à medida e os tribunais sem independência, que protegiam
a “camarilha” do epiteto da corrupção de que se alimentavam e beneficiavam pela
proximidade com o ditador.
A 2º parte da obra de Pereira
Marques dedica-se à análise do sistema político “nacional-salazarista”, a sua Constituição
corporativa, o funcionamento do semipresidencialismo e os organismos
“ideológico-militarizados” que o sustentavam, como o “não-partido” União
Nacional (UN), um “mal necessário”.
Uma das particularidades do
sistema partidário salazarista, dominado pela UN, que o tornam “um caso de
estudo é que, ao contrário da generalidade dos sistemas
autoritários/totalitários, o partido destinado a suportar o regime era
produzido por este, e não o inverso”, pois, com “efeito, a UN foi desde o
início construído a partir do Governo ou, mais precisamente, do Ministério do
Interior e da Presidência do Conselho” (pág.69).
Analisa-se também a relação do
ditador com os governos por si presididos, governos personalizados concentrando
o poder no próprio Salazar, sendo esta uma das características do regime,
citando-se, a propósito o próprio Salazar, numa entrevista a António Ferro,
onde o ditador clarifica “a sua concepção de governo do ponto de vista
funcional” : “A orientação, a responsabilidade política do Governo diz respeito
a duas pessoas – ao Chefe do Governo e ao ministro do Interior. Os restantes
ministros têm preocupações técnicas demasiado importantes para serem obrigados
a pensar ainda no problema político que devemos tentar reduzir à sua expressão
mais simples se queremos mudar de vida” (pág. 136).
O próprio ditador estabeleceu uma
hierarquia em “matéria de governação”,
distinguindo a “alta política”, da “média política” e da “baixa política”,
segundo o registo de uma reunião do Conselho de Ministros, realizada em 1945 e
anotada por Marcelo Caetano: a “Alta política” “compreendia a política externa,
a “constitucional”, a “imperial” e a económico-social; a “Média Política” (…)
abarcava a “influência externa na estrutura política portuguesa”, o sistema
eleitoral, a censura à imprensa, a polícia política, a situação económica e a
“política social”; e a “Baixa política” (…) reportava ao “estado da opinião
pública”, “intrigas”, “agitação militar”, “vícios da organização corporativa”,
etc.” (pág.137).
O relacionamento do ditador com
os diversos ministros e as diversas pastas reflectia essa “classificação”,
encarando o ditador o Conselho de Ministros “como um pequeno órgão colegial, um
“pequeno parlamento”, que lhe bastava e era necessário aceitar e tolerar”
(pág.137), daí a quase ausência de reuniões do concelho de ministros, a
governação baseada em “conversas bilaterais” com os ministros, governando
preferencialmente por decreto.
Um outro tópico que merece uma
análise detalhada é o das “encenações eleitorais no funcionamento do sistema”,
no capítulo terceiro do livro.
Distinguem-se dois momentos, uma
primeira fase até 1945, o das “eleições” sem oposição, uma segunda fase após
aquela data “com oposição”.
A principal característica do
regime neste campo era o de impedir a livre concorrência entre partidos. O
máximo que era permitido, principalmente na segunda fase, era uma concorrência
entre “associações apolíticas” tendo por base o conceito de “democracia
orgânica” segundo o qual “o Estado era a “Nação socialmente organizada”, onde o
“partido” único, a União Nacional era “uma espécie de voluntariado da política
sem interferência “na governação pública e [que] não aspira ao recrutamento do
funcionalismo ou do pessoal político” (citação do autor na pág. 157).
Neste capítulo o autor analisa as
características de cada um dos “actos eleitorais” organizados pelo regime, onde
destaca o recurso à fraude, à falsificação e
à manipulação como forma de perpetuar a UN, acabando invariavelmente com
a prisão dos opositores após o período eleitoral.
No último capítulo do livro
abordam-se as características da vida parlamentar, ou, mais correctamente, o
funcionamento do “não-parlamento”, sempre dominado pelo “partido” único e no
qual, quem pretendesse usar o parlamento como palco de contestação ou crítica,
ou levasse a sério esse espaço como tribuna de afirmação política, corria o
risco de ostracização, levando a dissidências como a de Henrique Galvão, caso
que é analisado em pormenor nesta parte da obra.
Destacamos ainda a publicação de
um anexo com um exaustivo levantamento dos “detentores ou ex-detentores” de
cargos políticos e públicos, durante o Estado Novo, uma espécie de lista dos
que “mandavam naquilo tudo”, a tal “camarilha” que beneficiava da proximidade e
da intimidade com o ditador.
Enquanto aguardamos pela continuação desta bem documentada análise do Estado Novo, salientamos o facto de muita da documentação usada, de uma grande riqueza de conteúdo, estar disponível e publicada, embora seja muitas vezes ignorada por outros autores, documentação que Pereira Marques usa de forma certeira para explicar situações e conceitos complexos, e que tornam este estudo de leitura agradável.
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