Não sou católico praticante, mas, tendo sido baptizado, sou “oficialmente” cristão.
Criado e educado num país de
maioria cristã e tendo frequentado uma
escola onde os ditos “valores” do cristianismo eram impostos por um regime que
tinha o catolicismo conservador como um dos seus pilares, a minha educação não foi
indiferente aos valores cristãos.
Aí começou a minha
contradição, pois, alinhando com valores que me habituei a associar com o
cristianismo, como os da solidariedade, da defesa dos mais fracos, do pacifismo,
do combate às desigualdades, do respeito pelo próximo, não era isso que via ser
praticado por muitos “ditos” católicos que conhecia, nem por um regime que se
dizia de base católica, nem pela hierarquia da Igreja.
Apesar de dever muito do meu entusiasmo
e respeito pela natureza, pelo património e pela história local às aulas de
Religião e Moral do saudoso padre Joaquim, as contradições que acima referi
nunca me fizeram repensar a minha atitude em relação à Igreja.
Deve-se referir que o padre Joaquim
era uma excepção, não só nas aulas, onde em vez de nos impingir o livro único
do catolicismo oficial e conservador, imposto por uma hierarquia dominada pelo
Cardeal Cerejeira, um dos braços direitos do ditador Salazar, pelo contrário, nos tirava da
sala de aula e levava a visitar o
património e conhecer o ambiente natural, ou ocupava as aulas com recurso a meios audiovisuais, uma raridade pedagógica na altura, mas também como fundador e director
do jornal “Badaladas”, abrindo as suas páginas ao debate e à colaboração de
conhecidos oposicionistas, sendo por isso alvo do aparelho repressivo do Estado
Novo, pela censura e pela vigilância da PIDE, como descobri em futuras investigações
nos arquivos.
Percebi mais tarde que o padre
Joaquim era diferente do clericalismo então dominante porque tinha estado
ligado à Juventude Operária Católica e era um seguidor da abertura do Concílio
Vaticano II, uma iniciativa do Papa João XXIII.
O meu pai, que tinha deixado
de acreditar na Igreja ainda na infância, como reacção ao cinismo e hipocrisia da hierarquia
da altura, revelava, pelo contrário uma grande admiração pelo papa João XXIII e
pelas suas encíclicas, que na altura representaram uma ruptura com uma Igreja
que por cá era cúmplice de uma ditadura e com o seu antecessor, o papa Pio XII
que governou a Igreja entre 1939 e 1958, foi conivente como o fascismo e o
nazismo, por muito que recentemente alguns tentem branquear a sua acção.
Infelizmente o papa João XXIII
governou a Igreja por pouco tempo, entre 1958 e 1963. Mas a sua acção deixou
marcas que os seus sucessores não conseguiram travar. Recorde-se que o papa
Paulo IV (1963-1978) conseguiu irritar as autoridades do Estado Novo, primeiro quando,
em visita a Fátima em 1967, se recusou ir a Lisboa encontrar-se com Salazar que,
contrariado, teve de ser ele a deslocar-se a Fátima para estar com o papa,
depois quando, em 1970, recebeu no Vaticano os líderes dos movimento de libertação que combatiam em África,
acontecimento que foi abafado pela censura.
Houve uma nova esperança de
abertura com a eleição do papa João Paulo I, mas que viveu e governou poucos
dias, e cuja morte foi tema de muitas teorias da conspiração, que, aliás, estiveram
na origem da temática do último filme da série “O Padrinho”.
Foi então nomeado, pela
primeira vez em muito tempo, um papa não italiano, João Paulo II, que esteve na
origem de um dos pontificados mais longos, entre 1978 e 2005. Popular no seu
contacto com os fiéis, manteve e reforçou o conservadorismo e imobilismo nos
valores e princípios da Igreja. Sucedeu-lhe Bento XVI, um retrocesso na
aparente abertura populista do anterior papa, e que, incapaz de lidar com os escândalos financeiros
e da pedofilia no seio da Igreja, tomou a decisão de, pela primeira vez em
séculos, abdicar em 2013.
Foi então que o mundo foi
surpreendido com a eleição do papa Francisco, o primeiro papa não europeu. A
sua acção agitou as águas de um clericalismo conservador e bolorento, assumindo
a defesa coerente dos valores que associamos à vida de Cristo, como os da
critica aos poderosos, a defesa na natureza, o pacifismo, a defesa dos desvalidos,
não apena pela retórica, como era o máximo que faziam os seus antecessores, mas
pela prática.
Isto custou-lhe muita
inimizades no seio da hierarquia e de muitos católicos conservadores e, pelo contrário, granjeou
admiração mesmo fora da Igreja e entre ateus.
Foi um papa que assumiu de
forma coerente os valores que associo a Cristo, ao contrário do que ainda hoje
acontece com muitos ditos católicos.
A hipocrisia dominou a
presença de líderes mundiais no seu funeral, mas Francisco, mesmo na morte, deu
a volta aos poderosos que não puderam estar presente em Santa Maria Maior, lugar
que ele escolheu para o seu túmulo, uma escolha também por si com um grande
simbolismo, já que esta se situa num lugar muito frequentado por sem-abrigo e
imigrantes.
No Conclave que agora se
inicia confrontam-se várias tendências, a dos que querem por um ponto final às
reformas iniciadas por João XXIII e aceleradas por Francisco, a dos que querem
continuar a acção de Francisco, mas mantendo pontes para evitar a ruptura com
os conservadores, e a dos que querem continuar e acelerar as mudanças anunciadas
por Francisco, custe o que custar.
No primeiro grupo estão a maior
parte dos cardeais norte-americanos (com destaque para Joseph Tobin ou o
trumpista Raymond Burke), alemães (como o tenebroso Gerhard Muller), holandeses,
paradoxalmente parte dos africanos (não todos), e o pior de todos, o Hungaro Péter
Erdo.
A maioria está algures entre o
segundo e o terceiro grupo
No segundo grupo destaca-se
Pitro Parolin e vários cardeais italianos, parte dos cardeais portuguese, um
cardeal suíço e um espanhol, o africano, do Gana, Peter Turkson, ou o maltês
Mario Grech.
No terceiro grupo está a maior
parte dos cardeais franceses, o espanhol Cristóbal Romero, o filipino Luis
Tagle, o italiano Matteo Zuppi e o nosso Tolentino de Mendonça.
Mas pode acontecer sempre uma
surpresa e não ser escolhido nenhum destes nomes.
Pela nossa parte, já tendo por aqui dito que só havia dois líderes credíveis a nível mundial, António Guterres e o papa Francisco, esperamos que a sucessão deste último não isole ainda mais o Secretário Geral da ONU e seja escolhido alguém que seja continuador da luta de Francisco contra as desigualdades e defensor do pacifismo.